Aprender com os mestres

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Na Aldeia Pedagógica de Portela, situada às portas de Bragança, os mais velhos partilham um conhecimento acumulado durante décadas com quem nunca aprendeu os labores tradicionais. São os Mestres da Aldeia que mostram o galinheiro e a horta, ensinam a fazer pão e desvendam os segredos da forja. Ana Pedrosa (texto) e António Sá (fotos) passaram por lá numa visita familiar

"Posso fazer uma festinha?" O aceno afirmativo transforma a galinha num brinquedo, acariciado por várias mãos infantis. Clara não resiste a encostar a cara ao lombo quente e macio, enquanto Margarida prefere partilhar as histórias dos seus animais: "Nós temos uma que tem poupa." As duas irmãs vivem no campo e para elas a capoeira não tem segredos, mas mesmo assim entusiasmam-se com a visita ao galinheiro, aproveitando para relatar à dona Maria Adelina os feitos e feitios dos "seus" garnisés. Ficam a vê-la atirar uma mão-cheia de grão e riem-se do alvoroço de penas pelo ar quando a senhora tenta agarrar um dos galináceos para o trazer para a rua.

Este poderia ser um encontro habitual entre uma avó e seus netos, se em Portela houvesse crianças. Mas não há, tal como não as há em muitas outras aldeias do interior. Nisso Portela não se distingue da maior parte das povoações vizinhas situadas no Parque Natural de Montesinho, às portas de Bragança. Também não tem um núcleo antigo digno de nota, nem seria particularmente atractiva não fosse estar aconchegada por bosques de castanheiros, que em finais de Novembro ainda conservam a cor dourada. Ao fundo estendem-se morros cobertos por carvalhais, que daqui a pouco estarão brancos de neve para se cobrirem de verde aos primeiros calores da Primavera.

Foi neste cenário que a Azimute lançou raízes há seis anos, na escola primária vazia de alunos. Obras feitas, uma demão de tinta nas paredes, ervas aromáticas plantadas no recreio onde árvores muito antigas continuam a pingar castanhas, a Associação de Desportos de Aventura, Juventude e Ambiente dedicou-se a marcar trilhos de Interpretação da Natureza, a proceder à limpeza da matas envolventes com a colaboração da população e a receber grupos escolares para sensibilizar os mais novos para a protecção do património natural.

Até que, em 2010, surgiu a oportunidade de concorrer ao programa Entre Gerações, lançado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Entre 300 candidaturas, foram escolhidos sete projectos-piloto para serem apoiados "no planeamento, teste e implementação de novas ideias para actividades intergeracionais". Um desses projectos é o da Aldeia Pedagógica de Portela, os outros seis estão a decorrer em Aveiro, Foz Côa, Leiria, Baixo Alentejo e Lisboa.

O estendal do pão

Em Portela espanta-se a solidão e sacode-se a rotina com um conceito simples. Se os mais velhos acumulam décadas de sabedoria, partilha-se esse conhecimento com quem nunca aprendeu labores tradicionais e gestos antigos. Assim surgiram os Mestres da Aldeia, "avós que nos guiam pelas tarefas diárias da horta e dos animais, que nos ensinam e contam histórias de como era a vida na aldeia, de como se faz o pão e como se colhem as ervas para preparar os chás".

Numa aldeia de quarenta pessoas, oito aderiram ao projecto. São mestres da horta, do pão, do sabão, do galinheiro, da forja, das compotas, licores e chás, que tanto orientam workshops para desvendar aos iniciados os segredos das compotas, como frequentam aulas semanais de ginástica ou oficinas ocasionais de fotografia digital e de serigrafia, técnica usada para enfeitar as embalagens dos produtos locais vendidos na mercearia online.

Desta vez coube a Maria Adelina guiar os visitantes pelos meandros da aldeia. Com a equipa da Fugas e os seus filhos está outro casal das redondezas, com as filhas habituadas à horta mas não a ver sair o pão do forno a lenha: "Que cheirinho!". Seguimos o aroma tentador por um caminho estreito até um pequeno anexo com as paredes enfeitadas por grelhas de vários tamanhos ("umas para as sardinhas, outras para as alheiras"), um fole, um velho despertador dourado e uma vassoura de giestas com que se mistura o sal na água morna antes de a juntar à farinha. Depois de preparada, a massa "fica na masseira a dormir, por umas duas, três horas". Outra amassadela para retirar o ar e o pão volta "a dormir mais um pouquinho", desta vez no estendal no pão, mais perto do calor das brasas.

Agora a pá entra no forno para retirar pequenas bolas quentes, que são verificadas, uma a uma, com os nós dos dedos. O gesto intriga as crianças: "Porque bates no pão?". A resposta chega pronta: "Para ver se estão bons e têm uma boa côdea."

Enquanto o pão arrefece saímos para a horta, sob o olhar atento de dois cães que nos vigiam de cima de um muro. Gatos repousam na soleira das portas, um tractor passa na rua, ouve-se um leve chilrear e este é todo o movimento de uma tarde de sábado. Pelo caminho cruzámo-nos com dona Imperatriz, uma das mestres, que nos pergunta de onde vimos e para onde vamos, no tom sereno de quem já se habituou aos visitantes ocasionais.

O barbeiro que virou ferreiro

Mais mestres se juntarão a nós para dois dedos de conversa, enquanto o pequeno bando de crianças se dispersa pela horta. Margarida pede lápis e papel para desenhar o que vê, Mariana pergunta "como é que as abóboras se chamam meninas se são tão grandes", Luís e Clara ensaiam malabarismos com as maçãs caídas no chão. Apesar do frio, a terra é fértil e ali cresce de tudo: alho-francês, nabiças, pimentos, couves, "tronchudas para o Natal" e "galegas para o caldo-verde e dar aos animais, fruta em abundância, que sobra porque os animais escasseiam, "não há porcos, não há coelhos... só galinhas".

A caminho da forja vemos que há também um rebanho de cabras a pastar num prado, dominado pelas barbas brancas de um bode que não acredita na gentileza de estranhos. Acompanhamos a passada lenta do senhor Abílio, 83 anos de simpatia e um manancial de histórias. Antes de chegarmos ao casinhoto de xisto, o mestre conta que nunca chegou a ser ferreiro, o seu ofício era de barbeiro itinerante. Com orgulho vai desfiando o rosário de aldeias que visitava em dias marcados, sempre a pé, "fizesse sol ou chuva". Depois acaba por desvendar que as coisas da forja aprendeu-as com o ferreiro a quem deu guarida durante anos.

Mas o à-vontade com que o agora mestre da forja nomeia os objectos e o seu uso mostra que passou ali muito do seu tempo livre. "Juntava-se aqui muito povo, a ver trabalhar o ferreiro. Gostávamos de ver quando o ferro ficava "rojo" e ele o estendia com o malho na safra." A safra é a bigorna de quarenta quilos, a "toeira" a fornalha onde o ferro descansava nas brasas até ficar incandescente - ou rojo, como se diz por aqui. Para os miúdos é demasiada informação em palavras que desconhecem, mas não arredam pé, fascinados com o enorme fole que se acciona com um sistema de alavanca e que, à vez, pedem para experimentar.

A luz que se infiltra pela abertura sem vidros vai perdendo fulgor, o dia arrefece e o senhor Abílio anuncia que tem de ir para casa, acender o lume. Para nós está ainda reservado um lanche que João Cameira, presidente da Azimute, preparou sob os castanheiros que envolvem a sede da associação. A manteiga escorre no pão que há pouco vimos sair do forno, prova-se o resto de um licor de noz, as crianças correm à volta do edifício com paragens breves na mesa para pedir mais um naco. João Cameira diz que, apesar de o projecto apadrinhado pela Gulbenkian terminar no final de 2011, o conceito será continuado na Portela, enquanto houver mestres dispostos a ensinar e gente curiosa para aprender.

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