O Gato das Botas com Agatha Ruiz de la Prada

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Agatha Ruiz de la Prada em Lisboa Miguel Manso

Até ao dia 22 de Dezembro é possível ver no Teatro Camões, em Lisboa, a produção que o São Carlos fez da ópera do catalão Xavier Montsalvatge O Gato das Botas - em que o gato é uma gata e os figurinos, os cenários e o encenador servem o compositor e não o contrário

Na ópera O Gato das Botas, do compositor catalão Xavier Montsalvatge (1912- 2002), com libreto de Nestor Luján a partir do conto de Charles Perrault, o gato é interpretado por uma cantora. Anda de trotineta, usa botas de salto agulha e, com a velocidade a que percorre o palco, faz esvoaçar a sua capa fúchsia. Esta produção, que se estreou no Teatro Real de Madrid, em 2005, com encenação de Emilio Sagi e com cenografia e figurinos da criadora de moda espanhola Agatha Ruiz de la Prada, pode ser vista até 22 de Dezembro numa produção do Teatro Nacional de São Carlos no Teatro Camões, em Lisboa.

A direcção musical é de João Paulo Santos, que explica que Montsalvatge não fez alterações ao conto de Perrault. O Gato das Botas tem "todos os passos que uma ópera deve ter", mas vê-se também que houve "uma grande preocupação de Montsalvatge em fazer curto". Numa ópera para crianças, cada acontecimento deve demorar menos tempo do que demoraria numa ópera para adultos e isso parece ter estado na cabeça de Montsalvatge, quando a escreveu. "É tão rápida a maneira como ele faz um número de abertura, logo de seguida uma ária, e esta ainda não acabou e já está a formar um dueto. São números musicais tão curtos que a minha maior preocupação com os cantores e com a orquestra foi que ficasse logo definida a cor de cada acontecimento, que desde a primeira nota fosse aquilo que é", explica o director musical ao P2.

Por isso, João Paulo Santos entende perfeitamente o convite feito pelo encenador Emilio Sagi à criadora de moda Agatha Ruiz de la Prada, para que trouxesse a esta ópera "a vivacidade e a cor que ela tem em tudo que a gente lhe conhece", mas também pela sua capacidade de ser "directa, óbvia e comunicativa".

Agatha Ruiz de la Prada deu corpo às ideias que o encenador Emilio Sagi tinha e que partiam da música e do que estava escrito. "O encenador não se está a sobrepor à música, mas a servir a ideia do compositor. Sente-se que Agatha deu forma a ideias que vieram do encenador e é assim que deve ser feito", acrescenta João Paulo Santos, que considera ser esta a maneira ideal de pôr esta ópera em cena, até pela sua simplicidade. "As soluções encontradas são o que têm de ser: uma trotineta ou uma bandeirinha com um coração. Se usassem raios lazer ou qualquer coisa em 3D, estariam a dar-lhe um tratamento que ia contra o espírito musical da obra", explica. "O ideal numa ópera é quando tudo contribui para o mesmo. Infelizmente, hoje em dia, em 90 por cento das encenações, os encenadores sobrepõem-se à ideia que está na música, porque querem encontrar coisas que não estão lá. E, às vezes, estamos a ver dois espectáculos: o da música e o do palco", considera o director musical.

Uma ópera muito Agatha

Agatha Ruiz de la Prada, sem saber o que pensava João Paulo Santos, acabou por confirmar, no dia seguinte, as suas palavras. A criadora espanhola foi convidada por Emilio Sagi para fazer os figurinos e a cenografia desta ópera, quando ele era director artístico do Teatro Real de Madrid. E, depois, assistiu à produção de O Gato das Botas em Barcelona e, mais tarde, quando se estreou em Lausanne, na Suíça. Também não quis perder a apresentação em Lisboa. "Esta ópera é muito Agatha, mas quem inventou a gata não fui eu!", diz Agatha Ruiz de la Prada ao P2.

Quando lhe pediram que fizesse os figurinos, o gato já era interpretado por uma rapariga. "O mundo da ópera é muito especial. Quando lá se trabalha, quem manda são os mestres. A figura do director artístico é muito importante. Foi Emilio Sagi que me pediu o que queria. Era muito importante que houvesse cor e acho que esta ópera representa muito daquilo que eu sou, mas para que tudo isto funcione tem de haver um director artístico à altura", reafirma a criadora.

Foi também do director artístico e encenador a ideia de utilizar as letras do abecedário para formar palavras em cima do palco e separar os actos. "Emilio Sagi é um senhor que faz isto há 45, 50 anos. Sabe tudo. Pode-se fazer uma coisa muito bonita, que pode ser aborrecida. Ele sabe fazer as coisas, para que o espectador esteja sempre atento. Sabe os truques todos, o que é uma maravilha para quem quer aprender."

Quando foi convidada pelo encenador, Agatha Ruiz de la Prada teve logo a ideia de trazer para o palco os rolos coloridos, que fazem lembrar o boneco dos pneus Michelin, e que costuma utilizar nas suas criações na passerelle. Também para lá transportou as bolas e as flores, os corações. Mas nem tudo o que imaginou foi fácil de concretizar. A princípio, por exemplo, o ogre não se conseguia sentar no seu fato com bolas. Um dos coelhos sentiu-se mal por causa do calor que sentia dentro do fato. "É muito difícil, cantar, actuar e usar trajes difíceis e complicados que são feitos para que se vejam de longe. O mundo da ópera é realmente o que tem mais mérito de todos. Porque uma modelo veste-se e anda, vai até ao fim da passerelle. Na ópera, os artistas têm de saltar, cantar, dançar. Por isso é tão impressionante. Por um lado, a música é espectacular e, por outro, há uma estética pela qual os cantores se sacrificam bastante. É impressionante como se sacrificam", reconhece.

Coincidências felizes

No mundo de Agatha Ruiz de la Prada parecem não faltar coincidências. A ópera O Gato das Botas é do compositor catalão Xavier Montsalvatge, que teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A filha do compositor catalão casou-se com um primo da mãe de Agatha. Primeira coincidência: "A neta de Montsalvatge esteve a trabalhar comigo cinco anos, encarregava-se da minha página web. Ela e a mãe ficaram emocionadíssimas com esta produção." Segunda coincidência: "À estreia em Madrid assistiu um francês que decidiu traduzir o libreto para a sua língua. Como era o director da ópera de Lausanne, mais tarde a produção estreou-se lá."

Agatha organizou com a neta de Montsalvatge um desfile de modelos para as meninas suíças. Terceira coincidência: não é comum que uma ópera espanhola viaje e por isso é muito emocionante que esta já tenha esse currículo e se estreie também em Lisboa. Quando Agatha chegou ao aeroporto, ao pé da sua mala aos corações estava a mala de um senhor que ia fazer a viagem Madrid-Lisboa-Brasil. "Era uma mala que transportava um gato! Que coincidência, vindo eu para Lisboa por causa de O Gato das Botas!", conta entusiasmada, pois nunca lhe tinha acontecido nada parecido na vida.

Quando era pequena, Agatha Ruiz de la Prada lembra-se que foi ver a ópera Pedro e o Lobo e não a entendeu. "O Gato das Botas é mais fácil", observa. Tanto ela como o maestro João Paulo Santos referem que esta é uma boa maneira de se apresentar o universo da ópera às crianças. "É fenomenal ter-se a oportunidade de levar uma criança pequena à ópera, porque lhe estamos a dar uma coisa prodigiosa. Tal como acontece nas outras artes, quando mais conheces mais desfrutas."

"A cultura é um milagre. Neste momento de crise é preciso apostar na cultura", acrescenta a criadora, que continua a confeccionar em Portugal as suas colecções. "Para mim as fábricas portuguesas continuam a ser muito importantes. Tudo o que trago hoje vestido é feito em Portugal", orgulha-se.

"E vai ser ainda mais importante no futuro. Cada dia que passa é mais caro confeccionar na China e a relação com Portugal é 100 vezes mais humana. No passado, erradamente, a Espanha fechou a sua indústria e o bom de Portugal é que, apesar de ter sofrido estes anos, não fechou nada. Tenho muita confiança de que Portugal vai ser um dos países que melhor vão sair da crise." Haja cultura.

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