Morreu Ivan, o filho-taslimã de Cameron

A morte do filho mais velho do líder dos conservadores britânicos deixou todo o Parlamento com uma lágrima no olho. Novos tempos da política?

a A morte do filho mais velho de David Cameron, líder dos conservadores britânicos, que é dado como o muito provável próximo primeiro-ministro do Reino Unido, é uma tragédia privada, que a família Cameron quer viver em discrição. Foi isso que pediu aos media, num comunicado divulgado ontem, dando conta da morte de Ivan, de seis anos, um menino que sofria de uma doença raríssima, em que os sintomas de paralisia cerebral e da epilepsia se conjugavam, desde os primeiros dias de vida, para conspirar uma morte que se sabia que ocorreria na infância. Mas a morte deste menino que nunca falou, nem andou, e sofria de convulsões gravíssimas diariamente, mas em quem o pai costumava falar constantemente - e a quem atribuiu a origem da sua força modernizadora do Partido Conservador britânico - gerou também um facto político novo no Reino Unido, em que a vida privada transbordou para a esfera pública: nunca uma sessão no Parlamento de Londres tinha sido interrompida devido ao luto de um deputado.
Todas as semanas, o primeiro-ministro e o líder da oposição trocam críticas corrosivas durante meia-hora. Ontem era um desses dias. Mas o primeiro-ministro Gordon Brown, de gravata preta e rosto emocionado, adiou o confronto com Cameron ou com William Hague, que o substituiria. Foi a primeira vez que uma sessão parlamentar foi adiada devido à morte de alguém que não é um deputado - aliás, o protocolo estipula que só por morte de um primeiro-ministro isso aconteça. A última vez que o Parlamento parou foi em 1994, quando John Smith, o então líder trabalhista, morreu subitamente.
O elo com Brown
"A política pode dividir-nos, mas há um laço comum que nos une em simpatia e compaixão em tempos de provação e de dor, quando precisamos de nos apoiar uns aos outros", disse Gordon Brown. A sala do Parlamento, normalmente cheia do burburinho de vozes, com bocas e apartes dos deputados, estava inusitadamente calada, relatava o site Politics.co.uk.
A morte de Ivan aconteceu pelas 6h30, 45 minutos depois de David e Samantha Cameron terem entrado com ele no serviço de urgência do hospital de Saint Mary, no centro de Londres. A criança sofria de uma doença raríssima - síndrome de Ohtahara, que se estima que afecte 0,2 por cento das crianças com epilepsia, uma doença que afecta 0,5 por cento da população, adianta a BBC. A mortalidade da síndrome de Ohtahara, que se deve a danos estruturais no cérebro, é muito elevada. As crianças sofrem de convulsões graves, logo nos primeiros dias de vida, parecem excessivamente sonolentas e desenvolvem uma rigidez nos membros semelhante à provocada pela paralisia cerebral.
Os jornais recordavam que os dois líderes políticos britânicos estão de facto unidos por tragédias familiares semelhantes: a primeira filha de Gordon e Sarah Brown, Jennifer Jane, nasceu prematura e morreu dez dias depois do parto, em 2001. E os filhos do primeiro-ministro sofrem de fibrose quística, uma doença genética dos pulmões, que também conduz à morte, normalmente na casa dos 20 anos. Por outro lado, o líder dos liberais democratas, a terceira maior força política do país, embora não tocado pela tragédia, foi pai este fim-de-semana.
Fleumáticos? Nem por isso
A fragilidade dos bebés invadiu ontem Whitehall, torcendo um nó no coração dos normalmente cínicos políticos.
Fez-se um longo caminho, desde os tempos em que o facto de o Presidente norte-americano Franklin Roosevelt se ver muitas vezes confinado a uma cadeira de rodas, devido à poliomielite, ter sido mantida em segredo pelos políticos e pelos media. O stiff upper lip dos ingleses, essa célebre fleuma que os impediria de mostrar emoções, já não é o que era.
Ou se calhar nunca o foi: o laço às bolinhas de Winston Churchill era uma homenagem do primeiro-ministro da II Guerra Mundial ao pai, Lord Randolph, também ministro, e que foi morrendo à vista de todos, na vida pública - provavelmente de sífilis, recordava ontem Michael White, editor de política do jornal The Guardian.
Mas para Cameron, o filho era uma espécie de taslimã. Quando ele nasceu, em Abril de 2002, era deputado há apenas dez meses. E o nascimento deste bebé com deficiências severas, dizia ele, esteve directamente ligado à refundação do Partido Conservador que empreendeu desde 2005, quando se tornou líder dos tories.
Cameron não escondia o filho - o seu "lindo rapaz", como lhe chamou um dia, frente às câmaras e aos blocos de notas dos jornalistas, sempre prontos a registar as pinceladas de cor que este jovem político de 42 anos (fará 43 em Outubro) imprimiu no cinzento que tomava conta do Partido Conservador desde que Margareth Thatcher saiu de Downing Street, deixando o Governo nas mãos do muito descolorido John Major. Ivan aparecia no postal de Natal que o político enviou no último Natal, ao colo do pai. Olhos colados um no outro, pai e filho pareciam conversar com o olhar.
Nas mãos do NHS
Na verdade, o líder tory atribuía ao nascimento deste filho a sua mudança de atitude e visão da sociedade britânica. Em especial a sua preocupação com o Serviço Nacional de Saúde - NHS, na sigla em inglês pela qual todos os cidadãos se lhe referem, uma instituição que cumpriu 60 anos no ano passado, e da qual os britânicos têm tanto orgulho como gosto em criticar. Muitas vezes os conservadores se viram em dificuldades para assegurar os cidadãos que não poriam em causa os serviços de saúde gratuitos - mas não Cameron.
"Para mim, não se põe a questão de dizer que o NHS estará seguro nas minhas mãos, pois a minha família está tantas vezes nas mãos do NHS. Quero que estejam seguros", disse ele, na convenção dos tories em 2006. "Tony Blair [o ex-primeiro-ministro britânico, que modernizou o partido trabalhista] uma vez explicou as suas prioridades em três palavras: 'educação, educação, educação'. Eu consigo fazê-lo em três letras: NHS", recorda a BBC.
Ivan era o aspecto da vida de Cameron que o trazia para junto das pessoas comuns, ele que vinha de famílias endinheiradas e aristocráticas. "Ajudo a cuidar de uma criança com deficiência - o meu filho. É a primeira coisa que faço todos os dias. Abriu-me os olhos para o mundo dos subsídios por doença, das baixas médicas, OT, SENCO, uma data de iniciais", disse num discurso em 2007.
Se a herança de Ivan será duradoura, e fará Cameron ganhar as eleições de 2010 face a outro político-pai-personagem-trágico, Gordon Brown, é um livro de páginas ainda em branco. O que parece certo é que a política britânica não ficará igual.

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