Saudades da Lisboa desaparecida

Quatro pinturas sem autor nem data mostram Lisboa antes do terramoto de 1755. Provavelmente foram pintadas quando a nova Lisboa começava já a edificar-se – um sinal de nostalgia.

Uma pintura do Terreiro do Paço, uma do Rossio, outra do Mosteiro dos Jerónimos e uma quarta do Convento de Mafra. No incío do ano, Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco, do Antiquário AR-PAB, compraram a um antiquário internacional – preferem não revelar nem o nome nem a nacionalidade – quatro óleos que mostram como eram estes lugares antes do terramoto de 1755. Desde Abril à venda, ainda não os conseguiram “encontrar o comprador certo”, diz ao PÚBLICO Pedro Aguiar-Branco – querem vendê-los juntos por 390 mil euros.

Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco não conseguiram descobrir o percurso destas obras – há quanto tempo estão longe de Portugal? São de autoria portuguesa? São perguntas que não conseguiram esclarecer no acto da compra, nem até agora. Além disso as pinturas não estão datadas nem assinadas.

Apesar de mostrarem vistas anteriores ao grande terramoto, podem ter sido pintadas posteriormente com base noutras fontes iconográficas, analisa Miguel Soromenho do Museu Nacional de Arte Antiga, no catálogo das pinturas produzido pelo antiquário. O historiador de arte explica aí como é possível perceber que as obras têm a mesma autoria: há “afinidades no tratamentos dos céus e na definição da paleta cromática” e “semelhanças na forma de dispor as figuras na composição”.

António Miranda, coordenador do Museu da Cidade, conheceu estas obras em Madrid, em Outubro de 2013 – antes de serem adquiridas pelos portugueses –, quando foram a leilão por 90 mil euros. Para o responsável do museu lisboeta, as pinturas são importantes “não pela sua qualidade pictórica”, diz, mas como “documento iconográfico dos costumes e da relação das pessoas com a cidade”.

Mais que novos pormenores sobre a Lisboa anterior ao terramoto de 1755, as pinturas do Antiquário AR-PAB são exemplo de como se reproduziam as vistas de uma cidade nos séculos XVIII e XIX: muitas vezes a partir de outras obras anteriores a que o artista tinha acesso – o que torna possível que representações da capital antes do sismo tenham sido pintadas quando essa cidade já não existia.

Terreiro do Paço: um porto para muitos barcos

No Arquivo do Museu da Cidade, onde se guarda boa parte das representações da cidade, é fácil encontrar vistas do Terreiro do Paço. Na análise deste óleo, Miguel Soromenho aponta a gravura do Terreiro do Paço atribuída a Zuzarte como uma muito provável fonte iconográfica. Apesar de diferirem no traço, muito mais seguro em Zuzarte, o ponto de vista sobre o 1Torreão do Palácio da Ribeira é o mesmo, tal como o tratamento de edifícios chave, como a 2Igreja de S. Francisco, na colina, e o 3Palácio dos Marqueses de Castelo Rodrigo, à beira-rio atrás do Torreão, ambos representados com promenor — o que nem sempre acontece na iconografia da cidade. A principal diferença entre as duas obras é o erro de escala: o autor anónimo agiganta estes edifícios, tal como faz com o Torreão, central na pintura.

Antiquário AR-PAB
Comparação da pintura do Antiquário AR-PAB do Terreiro do Paço com a gravura de Zuzarte (respectivamente). Antiquário AR-PAB/Google - Fotos: Miguel Manso

Outra proximidade entre estas duas representações está na forma como se apresenta a Torre do Relógio, que se ergue atrás do edifício do Palácio da Ribeira. Nesta pintura, tanto como na gravura de Zuzarte, a Torre do Relógio, de 1728, arquitectada pelo italiano António Canevari, apresenta-se bastante alta e desenhada com detalhe, o que não acontece em outras gravuras da segunda metade do século XVIII, como a de George Balthazar Probst, em que aparece, mas apenas como uma pequena torre, tal como uma gravura de autor desconhecido, datada do ano de 1707.

Terreiro do Paço
Museu da Cidade
Terreiro do Paço
Museu da Cidade

Na obra do Antiquário AR-PAB não há nenhum elemento arquitectónico novo, mas, afirma Miguel Soromenho no texto que escreveu sobre as quatro obras, há singularidades: a passagem de acesso à Torre do Relógio, claramente definida por uma entrada de luz entre os dois edifícios e que nem toda a iconografia mostra. Também na gravura de Zuzarte esta rua está bem definida.

Na pintura apenas o pormenor do Chafariz da Bola, que se posicionaria ao centro ao centro do terreiro, é ignorado. Na gravura de Zuzarte aparece deslocado para o canto inferior direito, e tem localizações diferentes noutras representações. Soromenho lembra que muitas vezes estes trabalhos eram começados no local e acabados em ateliers, o que torna frequentes estas imprecisões.

Terreiro do Paço
Desenha um barco na orla do rio Antiquário AR-PAB

Uma outra singularidade sobre o domínio da perspectiva nos dois artistas: Zuzarte, com a sua boa técnica, desenha um barco na orla do rio; o artista desconhecido pinta um barco muito semelhante ao de Zuzarte, porém, abre artificialmente espaço a outros três, adulterando a perspectiva – a sua pintura apresenta assim vários barcos, à semelhança do que acontece noutras representações.

No Rossio, um portal a que não é feita justiça

A pintura do Rossio tem também fortes semelhanças com uma outra gravura de Zuzarte: “O ponto de vista é exactamente o mesmo, deslocando a frontaria hospitalar [Hospital de Todos-os-Santos] para a direita do quadro de forma a poder incluir, também, a fachada da 1igreja de São Domingos, um dos mais importantes templos da cidade”, escreve Miguel Soromenho.

Mais uma vez as questões de perspectiva: o 2Convento da Graça está, na pintura, encostado ao 3Castelo de S. Jorge, que tem o jogo das muralhas errado, diz António Miranda. Também as dimensões do portal manuelino do 4Hospital de Todos-os-Santos estão alteradas: em comparação com as figuras humanas que passeiam no Rossio, ou mesmo com o 5Chafariz de Neptuno em primeiro plano, o portal não parece muito grande. No entanto, António Miranda lembra que este exemplar único da arquitectura manuelina era admirado por toda a Europa, não só pelo seu trabalho de escultura, mas pela também pela sua imponência – a que não é feita justiça na pintura.

Antiquário AR-PAB
Comparação da pintura do Antiquário AR-PAB do Rossio com a gravura de Zuzarte (respetivamente). Antiquário AR-PAB/Google - Fotos: Miguel Manso

A pintura é, diz Miguel Soromenho, uma simplificação da minúcia de Zuzarte, de que é exemplo o número de vãos dos prédios que ladeia o portal: na gravura, seis do lado direito e sete do lado esquerdo; na pintura, quatro do lado direito e cinco do lado esquerdo.

Na tentativa de chegar a uma datação desta e das outras pinturas, Miguel Soromenho observa que a gravura de Zuzarte do Hospital de Todos-os-Santos está datada de 1787, posterior ao Terramoto de 1755. O especialista coloca a hipótese de a gravura do Terreiro do Paço, do mesmo autor, ter também sido feita depois do sismo, o que implica, diz, que os quatro óleos sejam também posteriores à catástrofe. A justificação para a produção destas imagens de uma cidade que estava já desaparecida é, para Miguel Soromenho, simples: saudosismo.

No óleo do Rossio há em primeiro plano um poste de forca, tal como na gravura de Zuzarte. O poste é um dos motivos de interesse destas pinturas para António Miranda — aí está pendurado um homem, que em vez de estar enforcado, como seria de esperar, está preso pelos braços, mantendo ainda assim uma posição inesperada — preso apenas pelos braços é difícil alguém manter o corpo na vertical. Isto pode levar-nos a questionar “que castigos e humilhações seriam ali praticados e como que técnica se suspendia alguém desta forma”, diz o coordenador do Museu da Cidade. Além disso, não é comum um cortejo fúnebre representado no Rossio, acrescenta.

Terreiro do Paço
Antiquário AR-PAB

O Mosteiro dos Jerónimos “mais monumental”

Quanto às outras duas pinturas – Mosteiro dos Jerónimos e Convento de Mafra –, “é plausível admitir que a mesma fonte [Zuzarte] tenha fornecido os exemplos”, avança Miguel Soromenho, embora não nos tenham chegado estas obras.

Entre a iconografia antiga dos Jerónimos, há uma gravura anónima, datada do século XVIII, e outra de Piete van Den Berge, da segunda metade do século XVIII. Ambas têm a mesma vista sobre o mosteiro que é, de resto, a mais comum em todas as suas representações. Na pintura do Antiquário AR-PAB, no entanto, o edifício aparece demasiado próximo da margem do rio e a casa de nobres da 1Quinta da Praia, onde hoje está o Centro Cultural de Belém, aparece demasiado pequena. Alterar a escala dos edifícios era “uma técnica frequente quando se queria acentuar a monumentalidade de um edifício”, diz António Miranda, o que pode explicar este erro de perspectiva. O edifício do mosteiro é também, nesta representação, mais alto e tem, se comparado com a restante iconografia, mais vãos.

Antiquário AR-PAB
Comparação da gravura de Piete Von Den Berge, da segunda metade do século XVIII, com a pintura dos Jerónimos do Antiquário AR-PAB.Antiquário AR-PAB/Museu da Cidade - Fotos: Miguel Manso
Jerónimos
Museu da Cidade

Nas duas gravuras e no óleo é possível encontrar o murete que percorre toda a orla do rio e que não está presente em todas as representações desta vista – na pintura de Filipe Lobo de 1609 não há nenhuma estrutura defensiva, assim como na gravura de 1812 do francês Henry L’Êveque, onde à beira-rio há uma praia onde atracam pequenas embarcações. Este murete fará parte dos sistemas de protecção de cidade que se começaram a erguer no primeiro quartel do século XVII e que se continuaram a construir até à guerra da Restauração, em 1668, avança Miguel Soromenho.

Um Convento de Mafra com medidas diferentes

A mesma perspectiva oblíqua usada para a representação do Mosteiro dos Jerónimos é usada na pintura do Convento de Mafra. O domínio desta técnica é “inábil”, escreve Miguel Soromenho, – 1os vãos aparecem mais estreitos e as torres desproporcionais. É uma tentativa de dar leveza a um edifício visualmente pesado, diz Miguel Soromenho, e evita a perspectiva ortogonal da fachada, mais usada no desenho técnico, como o de Michael le Bouteaux, de 1792. O ponto de vista oblíquo idêntico ao do óleo é usado numa litografia de 1853, atribuída a J. Macphail, e que apresenta uma imagem mais realista: por exemplo, 2o torreão em primeiro plano esconde parte da fachada, o que por causa do mau uso da perspectiva não acontece na pintura.

Antiquário AR-PAB
Comparação da litografia de 1853 de Macphail com a pintura do Convento de Mafra do Antiquário AR-PAB.
Comparação da litografia de 1853 de Macphail com a pintura do Convento de Mafra do Antiquário AR-PAB.Antiquário AR-PAB/Museu da Cidade
Mafra
Antiquário AR-PAB

Na questão da datação das pinturas, este óleo pode dar mais pistas: a construção do palácio deveria estar finalizada em 1744 e os trabalhos de escultura só começaram em 1750 – este óleo não poderá portanto ser anterior a isso, conclui Miguel Soromenho. Além disto, a cena de camponeses no primeiro plano aponta para as décadas de 1770 e 1780, quando o espírito neoclassicizante e pré-romântico valoriza as cenas ingénuas e de inspiração rural.

Para lá da análise técnica e históricas das obras, Pedro de Aguiar Branco fala acima de tudo da importância das peças como documentos: “são quase como fotografias”, compara, “importantes para vermos uma parte da história portuguesa e de Lisboa”. É por isso que estão a “tentar encontrar o comprador certo em Portugal”, diz.