Mergulho no arquivo do homem que gravou música para explicar o mundo

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Alan Lomax Foto: Corbis

Na década de 30, Alan Lomax começou uma Jukebox Global. Dez anos depois da sua morte, ela é uma realidade: 17 mil ficheiros áudio disponíveis gratuitamente online. Uma viagem a um mundo desaparecido.

É uma viagem a outro mundo. Os blues de Howlin' Wolf ou Son House. A luxúria rítmica das Caraíbas. Os melismas marroquinos e o sol que emana dos cantores italianos. A História está perante nós: programas de rádio, entrevistas de rua, fotos de cantores, bailarinos e suas comunidades. Alan Lomax é uma figura fundamental para o estudo da música do mundo e, dez anos depois da sua morte, em 2002, aos 87 anos, os seus arquivos estão agora online.

O sonho a que chamava Jukebox Global tem 17 mil ficheiros áudio gratuitos no site da Cultural Equity, gerida pela filha, Anna. Já todos ouvimos parte deles, mesmo que não na forma original: foi em samples ali recolhidos que Moby baseou o seu álbum mais conhecido, Play. Agora, está tudo na net, em culturalequity.org.

Em 1933, quando partiu para o Sul americano com o pai, John Lomax, musicólogo e folclorista, para registar as músicas tradicionais do seu país, Alan era um jovem idealista que interrompera os estudos para documentar para a Biblioteca do Congresso uma cultura desconsiderada. Por força do seu trabalho - e do de nomes como Harry Smith ou Moses Asch -, transformou essa música em força inescapável do tecido cultural americano. A eles se deve, por exemplo, o boom do folk e blues nos anos 1950 e 1960, de onde emergiriam Bob Dylan ou os Rolling Stones.

Como aponta Ruben de Carvalho, comissário do ciclo Hootenanny, que leva anualmente à Culturgest as músicas tradicionais americanas, "a cultura americana highbrow era a europeia, quando a cultura popular americana era fruto das misturas dos escoceses, judeus ou afro-americanos" que formavam o país. "A fixação desse património antes que se perdesse era fundamental". E "criou condições invulgares para que se desenvolvesse". Exemplo: o jazz é hoje uma cadeira nas universidades americanas; impossível sem esse património.

Guiado pelo pai, Alan gravou, ajudou a divulgar e legitimou nomes como Woody Guthrie, Leadbelly ou Muddy Waters. Só isso faria dele uma figura fulcral na história da música popular do século XX. Mas houve as edições discográficas, concertos e conferências, as publicações, os programas de rádio e, mais tarde, televisão. E não só nos Estados Unidos.

De esquerda, investigado pelo FBI, deixaria o sufoco maccartista no início da década de 50, rumo a Inglaterra. Depois, quis mais. Espanha, Itália, Rússia, Marrocos... Através da música, quis perceber o mundo. "Teve uma compreensão muito vasta das ligações entre música e dança e a sociedade", refere Salwa Castelo-Branco, directora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa. Nascem desse desejo os projectos Cantometrics (canto), Choreometrics (dança) e Parlametrics (linguagem).

Foi via Cantometrics que Salwa conheceu Lomax. Na Universidade de Columbia, foi entrevistada para trabalhar no projecto. Desse contacto e das conferências a que assistiu ficou a imagem de "uma pessoa de grande energia, inteligentíssima, idealista, extremamente decidida". E não isenta de controvérsia. Salwa recorda que os Cantometrics foram criticados por se basearem em gravações, não em trabalho de campo, "o que acabou por resultar em conclusões não representativas". Ainda assim, mesmo os críticos não deixavam de lhe admirar a coragem e ambição".

Aquilo que guiou Lomax toda a vida foi a preservação de um mundo ameaçado: "Nós, do avião a jacto, do wireless e da explosão atómica, estamos à beira de varrer do globo o folclore não corrompido", disse. Salwa recorda um artigo da década de 70 em que Lomax refere o perigo do "acinzentamento cultural": "Não se falava ainda de globalização, mas ele estava preocupado com as influências das músicas mediatizadas, que acabavam por uniformizar práticas locais."

Ruben de Carvalho aponta nesse lamento uma contradição. "As circunstâncias que deram origem ao aparecimento de uma música popular urbana massificada e aculturada [a rádio, gravar som] são as mesmas que permitiram fixar e preservar essas tradições culturais." Lomax quis contornar a contradição ao tornar o registo do passado numa possibilidade de futuro. "Comparava a diversidade musical à biodiversidade", escreveu Jon Pareles no New York Times (NYT). "Para Lomax, cada estilo local representava uma forma de sobrevivência que poderia ser útil algum dia." A importância destes registos não se limita à preservação do passado, diz Ruben de Carvalho. "Fixa-se para que possamos lá voltar. Há um fenómeno curioso no jazz. Sempre que se chega a um impasse, como na passagem do swing para o bebop e daí para o cool, o avanço faz-se num regresso às raízes, ao blues." Trata-se de memória viva, para construir o que hoje somos. É por isso que Salwa Castelo-Branco se vem batendo pela criação em Portugal do Arquivo Fonográfico Nacional. Algo como aquilo que Lomax sonhou e que agora se tornou realidade.

Vemo-lo, lemo-lo, ouvimo-lo. Um arquivo iniciado em 1933 nas prisões, com um gravador de cilindros que a viúva de Edison emprestara ao pai. Tem, segundo o NYT, cinco mil horas de gravações áudio, mais de 100 quilómetros de filme, três mil cassetes vídeo e cinco mil fotografias. O passado a ressoar no presente.

Ainda Pareles: "Lomax não estava interessado em vender álbuns. Estava a tentar assegurar que a Humanidade podia ouvir e respeitar as suas próprias vozes."

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