As fotografias

A dor de viver conta muitas histórias.

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"Era uma pena não continuar esta viagem: esta a de coleccionar fotografias, viagens, filmes, pensamentos, omissões e até dores" Mag Rodrigues

A fotografia aparece-me a preto e branco arrancando-me um sorriso como se eu já não fosse aquela, a que capta um instante com o qual se identifica: “Sabes, partir o coração é uma forma tremenda de conhecer o mundo.” A frase, primeiro, sobressalta-me o olhar para depois o apaziguar. Foi uma das muitas coleccionadas nos últimos anos e retirada de um filme chamado, “Mulheres do Século XX” de Mike Mills. Espanto-me com o que encontro nas minhas fotografias entre os escombros do que fui. Rever fotografias é, muitas vezes, um encontro difícil com o que somos. Ainda seremos os mesmos? Faço a mim própria essa pergunta vezes sem conta enquanto me vejo ao espelho e aponto para os sinais novos que não estavam ali antes.

Ainda sinto o mesmo. Ainda me sinto a mesma. A minha forma de sentir não se alterou com tudo aquilo que os outros provocaram em mim, entre grandes dores e na mesma dose, longas celebrações. Sou a mesma. Nada de amargo vingou em mim.

Ao mesmo tempo que me enterneço com a frase, também penso sobre ela – “partir o coração é uma forma tremenda de conhecer o mundo”. Ter lido isto, nesse instante, muitos anos antes da que sou agora, fez-me estender um mapa fictício que se desenrola sobre a geografia afectiva que nos pertence. Todos fazemos a nossa. Distinguimo-nos com os pontos assinalados sobre o mapa: são as conquistas independentemente de terem sido amores felizes ou por concretizar.

Quando muitas vezes volto à ideia do primeiro amor, ele aparece-me muito cedo e sem um relâmpago que seja de desejo ou consumação. Talvez o amor absoluto seja aquele que nunca se concretizou. Aquele que podia ter sido. Aquele que ficou cristalizado no tempo e ao qual voltamos repetidamente por conforto. A vivência traz um desconforto enorme. Tendo agora a ser tolerante com os que sempre viraram às costas às consumições do amor e portanto à sua consumação. Embora eu não seja essa.

Noutra fotografia, igualmente a preto e branco, a escritora Françoise Sagan diz do alto da sua intelectualidade onde o contentamento pode destoar: “acho que uma história de amor é raramente longa e inteira”. Por que terei eu guardado esta frase? E foi o que ela não viveu ou as dores somadas a trazerem-lhe esta conclusão? Afinal, chamamos amor ao que não chegamos a concretizar ou isso é apenas matéria literária?

Mais uma fotografia? “O amor nunca é absurdo”. Também é a preto e branco. Minimal para me lembrar de que o importante se escreve com poucas palavras. As mais difíceis de encontrar. A frase vem de Julian Barnes e iliba-nos de tudo, sobretudo do que se viveu. Das vezes todas que jurámos nunca mais voltar atrás, dormir, rir ou chorar com aquela pessoa. Nunca foi absurdo. Por mais absurdo que isto nos pareça agora.

“Sabem, partir o coração é uma forma tremenda de descobrir o mundo.”. É esta a frase que prefiro. Revejo a fotografia feita de palavras e compreendo tudo o que nela cabe: saber que da dor nasce uma coisa maior. Se quisermos. Eu digo sempre isto – se quisermos – porque está quase sempre nas nossas mãos.

Acabo a crónica de hoje, fragmentada, com outra frase, mas antes de chegar a ela gostava de dizer isto: estes retratos que coleccionamos na nossa pequena e frágil torrente digital, aparentemente aleatória, diz muito mais de nós do que pensamos. As fotografias que juntamos e nunca apagamos fixam-nos no tempo. São cruéis até por nos lembrarem o momento que nos levou a querer registar esse segundo. A frase é esta dita por um senhor bem-parecido num filme ainda mais bonito: “Aceitamos o amor que achamos que merecemos.”. Foi roubada ao filme, “As vantagens de Ser Invisível” e é uma espécie de tatuagem que nunca se fez, mas está inscrita na pele. A nossa passividade permite que muitos nos desconstruam, que nos amarrotem a confiança e nos façam sentir quase indignos de viver tudo o que está ao nosso alcance. É muito.

Quando alguém vos partir o coração lembrem-se de estender o mapa para continuarem à descoberta do mundo. Era uma pena não continuar esta viagem: esta a de coleccionar fotografias, viagens, filmes, pensamentos, omissões e até dores.

A dor de viver conta muitas histórias.

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