O Estado da União – as duas faces de um discurso

Ursula Von der Leyen foi tímida na questão principal. Para a nova fase do seu projecto, a Europa precisa de operar uma transformação democrática, na forma como a sua democracia funciona aos vários níveis.

Desta vez, Von der Leyen pôde apresentar o seu discurso anual sobre o Estado da União contando com o sentimento de algum alívio que muitos sentimos por ver a pandemia mais sob controlo. O ano passado ainda não sabíamos se haveria uma vacina e uma coordenação europeia eficaz e se o plano europeu de recuperação poderia levantar voo. A Presidência portuguesa permitiu clarificar estas questões no sentido certo. O salto qualitativo iniciado no projeto europeu por força desta crise trouxe maiores níveis de solidariedade e coesão. Mas ainda tem muito que andar. O discurso da presidente esboça alguns passos, mas falta definir bastante mais.

Uma autoridade europeia para a prevenção foi anunciada, mas uma União Europeia da saúde que garanta acesso universal a cuidados de saúde de qualidade é algo bastante mais vasto. O compromisso de reforçar o apoio europeu à vacinação global contra a covid-19 é também positivo, mas falta o compromisso alargado num quadro multilateral.

A preparação duma estratégia europeia para desenvolver os cuidados pessoais faz também todo o sentido, não só para responder à pandemia mas também para criar um novo pilar de um Estado providência para o século XXI, respondendo ao envelhecimento demográfico e conciliando vida familiar e profissional – sem o que não pode haver real igualdade entre mulheres e homens. Mas há outros pilares deste Estado Providência que estão por reinventar para responder a novas desigualdades sociais e novas formas de pobreza.

Sim, a transição climática tem de ser apoiada por um Fundo Social específico que compense as perdas de emprego. Mas os planos de recuperação como um todo têm de ser desenhados para criar novos empregos em novas atividades, sobretudo para não sacrificar uma nova geração jovem. É fundamental que essa criação de empregos possa ocorrer em todas as regiões e não apenas nas regiões mais dinâmicas da Europa. O programa Alma para permitir aos jovens aceder a empregos noutros países, como o Erasmus o tem feito para a educação, é de saudar, mas a mobilidade na Europa deve ser voluntária e não forçada pela falta de oportunidades de educação e de emprego em certas regiões.

Sim, a transição digital é bem apontada como decisiva, mas ainda falta definir uma estratégia para uma via europeia distinta da americana e da chinesa. O ponto de partida deveria ser a utilização dos grandes dados (big data) europeus no domínio da saúde e da educação e de algumas indústrias inovadoras para desenvolver algoritmos, serviços e produtos alinhados com o modo de vida europeu, sustentável e inclusivo. Mas a formulação duma verdadeira política de inovação para a sociedade digital continua travada pelos canones dum paradigma passado, o da concorrência no mercado interno europeu. Enquanto isso, grandes operações de mercados públicos agora em curso poderão beneficiar mais empresas não europeias.

Os chamados planos de recuperação e resiliência deveriam ser entendidos como planos de reconstrução das economias europeias em novas bases. Ora isso é um empreendimento que requer um impulso financeiro de longo prazo, contando com uma capacidade orçamental e emissão de dívida pública europeias e com orçamentos nacionais com regras comuns atualizadas. Os famosos 3% de défice e 60% de dívida definidos nos anos noventa já pouco têm a ver com a realidade presente e futura.

Face à retirada americana do Afeganistão, o discurso da presidente reconhece a evidência. O mundo de hoje é multipolar, a competição sistémica crescente e a Europa tem de reforçar a sua autonomia estratégica com iniciativas próprias: nas intervenções humanitárias, na capacidade de defesa, no alargamento a Leste e no lançamento duma iniciativa alternativa à nova Rota da Seda chinesa, como Biden fez na última cimeira do G-7 – a Global Gate europeia. Faltou, no entanto, afirmar um compromisso reforçado com o quadro multilateral, tão mais importante quanto Guterres acaba de apresentar um ambicioso plano para o seu segundo mandato – Our Common Agenda.

A presidente foi tímida na questão principal. Para a nova fase do seu projecto, a Europa precisa de operar uma transformação democrática, na forma como a sua democracia funciona aos vários níveis. Em primeiro lugar para assegurar que os fundamentos do Estado de direito são mesmo respeitados em todo o seu território, face às atuais derivas autoritárias. Mas também para desbloquear decisões europeias que se arrastam há anos: salário mínimo, imposto mínimo sobre lucros, ação externa humanitária, defesa, direito de asilo são alguns dos exemplos marcantes. Alguém duvida para que lado cai a opinião maioritária dos europeus?

Termino com uma homenagem singela a um herói europeu que acaba de nos deixar e que soube tão bem promover a democracia a todos os níveis, local, nacional, europeu e internacional: Jorge Sampaio.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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