Curtas 2021: o regresso ao cinema

Eis o estado da nação das curtas em plena pandemia: e, com todas as restrições e problemas, Vila do Conde provou que ela existe e mantém-se entusiasta e determinada.

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Cassandra Bitter Tongue, de Ana Moreira DR

Várias sessões esgotadas, muito público a desfrutar da esplanada do Teatro Municipal, happy hours repletas no pátio da Solar, realizadores e programadores e jurados em amena cavaqueira. Não fossem as máscaras e o “nebulização” à entrada do teatro – e, já agora, o tempo que se manteve teimosamente cinzento ao longo da semana – e pensaríamos estar num Curtas pré-pandémico, com o ambiente descontraído que sempre marcou o certame de Vila do Conde

O palmarés da edição 2021 conhecer-se-á na tarde deste domingo, já em plenas restrições de “risco muito elevado” de um festival que, literalmente, decorreu numa “bolha”: num concelho rodeado de zonas de alto risco, mas que lhes escapou mesmo até ao finzinho; celebrado, já este sábado, com a primeira projecção pública em Portugal dos desconcertantes e estimulantes Diários de Otsoga, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, e com o cine-concerto de Angelica Salvi sobre o filme mudo Shoes, de Lois Weber.

À beira do 30º aniversário, que se celebra em 2022, o Curtas regressou ao seu calendário tradicional de Verão com uma selecção à qual não faltaram bons filmes distribuídos por todas as secções, competitivas e não só. Mas, inevitavelmente, o olhar sobre o certame que, este ano, passou a estar incluído na lista de festivais que “autorizam” a nomeação de filmes aos Óscares acaba sempre por se debruçar sobre a produção portuguesa. E aí, num ano que reflecte já os problemas de financiamento e produção resultantes da paragem da pandemia, há que tirar o chapéu a uma selecção competitiva bastante acima da média recente, que se prolongou para uma competição experimental com um número recorde de presenças nacionais. Inclusive de veteranos como Sandro Aguilar, cujo The Detection of Faint Companions mergulha a fundo na dimensão mais abstracta do seu cinema; ou Pedro Maia, cujo Berlin Feuer prolonga o trabalho de experimentação formal com a manipulação da imagem que tem vindo regularmente ao de cima na sua obra. Outros filmes, como Purkyne’s Dusk, de Helena Gouveia Monteiro ou Sunrise, de Lúcia Prancha, confirmaram como, muitas vezes, o minimalismo ou a simplicidade de métodos ou materiais permite uma abertura muito maior à exploração no primeiro caso, como trabalho sobre a cor e a estrutura; no segundo, sobre a relação entre o plano e a montagem, entre a imagem “encontrada” e a imagem “filmada”.

Dito isto, uma das coisas mais agradáveis no Curtas foi descobrir, ou confirmar, cineastas que têm uma visão própria, pessoal, um olhar seu. Que pode ser uma personalidade reconhecível que se transporta de filme para filme (Eduardo Brito, Leonor Noivo, Filipe Melo, Paolo Marinou-Blanco, Ico Costa, Paulo Patrício) ou um olhar que começa agora a despontar com determinação (Mónica Martins Nunes, Mário Macedo, Ana Moreira, Rodrigo Braz Teixeira). 

Nada disto significa que não tivesse havido “tiros ao lado” ou desilusões José Magro não convenceu por inteiro com Nha Sunhu, um objecto simpático, mas que não resolve a contento o seu vaguear entre ficção e documentário; A Casa do Norte, de Inês Lima, e Matilde Olha para Trás, de Ana Mariz, não se ergueram acima do instantâneo oblíquo e frágil que tantas vezes identificamos com o “filme de festival”.

Mas mesmo esses filmes menores manifestam uma vontade de cinema que atravessou todo o festival, de comunidade que se reencontra com celebração, do desejo de um regresso à normalidade possível de partilhar um filme no grande écran, com um público entusiasta. Vale o que vale, mesmo com lotações reduzidas e máscaras obrigatórias? Sim, mas hoje vale muito mais do que parece.

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