O começo do fim ou o fim do princípio?

A vitória só será possível se for global e o fim do princípio só efectivamente começará a concretizar-se quando todos os recursos da vacinação não estiverem confinados aos países mais desenvolvidos e ricos.

Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar que julga que o louco és tu...
Rudyard Kipling

21 de Julho de 2021. O título é de Sir Winston Churchill num discurso inesquecível e mobilizador da coragem e determinação da resistência inglesa nas horas negras após a retirada de Dunquerque. A RTP 2 passou recentemente, também, uma série dedicada a outra figura marcante dessa época, o general Charles de Gaulle, cuja intervenção e decisão salvaram a honra da França no combate pela Liberdade e Independência contra a uma horrível tirania que parecia invencível.

Que paralelo poderá haver entre esse passado e o tempo actual?

A pandemia foi porventura o maior desastre natural que afectou a Europa e o continente americano desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Em Portugal, como oportunamente nos recordaram, já vitimou em 18 meses mais portugueses que os 13 anos da guerra em África. Neste tempo ainda de angústia e de incerteza, serão legítimas as dúvidas dos cidadãos sobre a eficácia dos mecanismos democráticos e aparente tolerância para modelos autoritários, como estudos recentes revelaram? Talvez nostalgia por figuras marcantes, líderes que se afirmaram na provação, pela sua estatura política e intelectual, pela coragem das decisões difíceis, contra as correntes de opinião a favor de acomodação ou de capitulação, pela capacidade de saber desobedecer na defesa dos valores fundamentais que eram o cimento aglutinador das suas nações. De facto, é nos momentos de crise que se revelam as lideranças, afirmando-se pela sua auctoritas que provém do carácter, da coerência do percurso, da competência, do exemplo e da capacidade de mobilizar o melhor em cada cidadão, para a defesa do fundamental em detrimento do acessório. Isto é, o difícil exercício da liderança, que não é sinónimo nem se compadece com a popularidade fácil e a aceitação acrítica.

Será que se atingiu o ponto de viragem sugerido na primeira metade do título – o começo do fim –, apressadamente identificado como libertação, talvez num exercício vulgar de manipulação e identificação com memória colectiva imperecível? Uma ilha isolada? Recordo o Papa Francisco na Sexta-Feira Santa de 2020. Imagem icónica deste tempo pandémico, na solidão esplêndida e grandiosa de uma Praça de S. Pedro vazia, abraçada pela colonnata de Bernini, assumindo as dores e a esperança de uma Humanidade ainda perplexa por uma pandemia desconhecida. Como também o apelo tão frequentemente repetido à Fraternidade e à Solidariedade num combate que é global, de todos nós neste nosso planeta, bem resumido neste pensamento do Papa: todos frágeis, todos iguais e todos preciosos.

Y. N. Harari, logo nos primórdios da covid-19 num ensaio de grande divulgação mundial, chamou a atenção para o efeito de aceleração do tempo histórico e de catalisador de mudanças significativas na vida, na organização social e o desafio aos valores fundamentais que seria essencial preservar, porque são a essência das nossas sociedades abertas, tolerantes e democráticas. Este coronavírus, de origem e evolução ainda misteriosas (?), talvez venha a ficar na História como um factor determinante para uma verdadeira globalização de profundo sentido humano. De facto, a vitória só será possível se for global e o fim do princípio só efectivamente começará a concretizar-se quando todos os recursos da vacinação não estiverem confinados aos países mais desenvolvidos e ricos. Ouvi e impressionou-me a declaração do presidente da Organização Mundial da Saúde transmitida hoje. Foi um apelo à responsabilidade global para um controle eficaz desta pandemia que está a mudar a nossa forma de viver e, quem sabe, o nosso futuro. Recordou-me também o poema de John Donne que Hemingway citou na sua obra Por Quem os Sinos Dobram: “No man is an Island"; nenhum homem nem nenhum país dominará efectivamente a situação num oceano em que a propagação do vírus não esteja controlada, promovendo a emergência de novas mutações, mais agressivas e potencialmente mais graves. 

Chegámos talvez a um turning point: a vacinação é a mais efectiva arma ao nosso dispor neste combate. A evidência parece irrecusável: redução da mortalidade, da gravidade dos quadros clínicos, da necessidade de cuidados hospitalares muito diferenciados. Mas também se sabe que as novas mutações parecem poder comportar riscos ainda não claramente conhecidos, cujo impacto pode perturbar um melhor equilíbrio conseguido na gestão da doença. Por isso a vacinação é essencial ao sucesso, no estádio actual do nosso conhecimento é ainda a arma de maior eficácia neste combate e, por isso, é preciso que seja tão universal quanto for possível. É uma prioridade irrecusável. A sua organização, disponibilização e aceitação pela população – compliance – é fundamental, desde os jovens aos adultos, talvez com a excepção das crianças saudáveis e sem doenças associadas. O benefício excede em muito os riscos potenciais que foram sendo conhecidos e analisados. Não me canso de o repetir a muitos doentes que, preocupados com os seus problemas cardiovasculares, procuram orientação. De facto, este foi também um tempo notável em que a Ciência e a Medicina foram capazes de lidar com a incerteza, enfrentar surpresas e definir um caminho tão seguro quanto a actividade humana o permite. Confiar com inteligência na Ciência e na Medicina é indispensável. Tem um contraponto: a responsabilidade intelectual e social dos seus intérpretes. E essa tem sido uma realidade reconfortante! A única rota possível no mar encapelado da desinformação que pulula no universo acrítico de redes sociais.

O outro pilar desse apelo à confiança inteligente dos cidadãos em tempo de incerteza reside no exercício responsável da decisão política, baseada obviamente no conhecimento e na prova científica possível, mas que é mais complexa e requer coerência, sensibilidade e exemplo. É um desafio global, dos dirigentes políticos aos profissionais na Saúde e na Ciência. Discrepância interessante: as populações têm expressado de forma inequívoca a sua confiança nos médicos, enfermeiros e outros que, na Ciência e na Saúde, tiveram uma contribuição notável, mas em estudo publicado em semanário de referência, verificava-se que só nas profissões relacionadas com a gestão e informática da Saúde houve benefícios financeiros, com incremento apreciável das suas remunerações. Nem tudo, felizmente, se rege pela lógica do mercado: há valores fundamentais que se soube preservar e ainda bem, mesmo com os baixos salários! Mas é mais um desafio aos responsáveis políticos, que entre nós não poderão mais ignorar as necessidades das instituições e dos profissionais que deram o seu melhor neste combate que ainda não terminou. O tempo das promessas vãs e das ilusões esgota-se e acção coerente, inteligente e lúcida impõe-se e com urgência!

E esta reflexão conduziu-me, caro leitor, a outra que me parece irrecusável: o exercício da responsabilidade social e política, pilar da confiança inteligente dos cidadãos nas instituições e no Poder, exercício que tão maltratado tem sido nos tempos que correm. Estranho a esse mundo, refugio-me no escudo protector da cidadania que se procura informar, a do espectador empenhado, mas não posso deixar de me surpreender com a dificuldade em assumir as consequências do dever de Responsabilidade pública no exercício da Política. Nem todos os erros, omissões ou falhas têm dimensão criminal ou serão expressão de actuação dolosa no sentido deliberado de mal-fazer e prejudicar terceiros, e por isso fico surpreendido com o recurso que me parece abusivo a inquéritos pelo Ministério Público, numa tentativa de escamotear incompetência e incapacidade. Em artigo também recentemente publicado no Expresso de 16/7/2021, intitulado A política sem responsabilidade, Miguel Poiares Maduro condena com lucidez, informação e clareza a eliminação da responsabilidade política e a sua redução à responsabilidade criminal. Sabemos aonde isto pode conduzir! E talvez aqui possa residir a razão fundamental da nostalgia de lideranças que se afirmaram nas grandes provações europeias no século XX e o mecanismo que poderá conduzir à erosão da esperança democrática que marcou a minha geração.

É tempo para a cidadania informada e empenhada exigir Responsabilidade, a todos sem excepção, e na Política como exemplo. Será um exercício fundamental, exigente que, nos meandros da memória, me conduziu ao poema de Rudyard Kipling na inesquecível declamação de João Villaret. Questão de bom senso e calma, sem dúvida, mas de exigência intelectual, de informação e de carácter. Não apenas no combate pelo Presente, mas, sobretudo, pelo desafio do Futuro, o qual não se compadecerá com a incompetência, a ignorância, a facilidade e a irresponsabilidade.

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