A nova Lei de Cinema e o lince da Malcata

Nenhum cidadão compreenderá a razão desta algazarra de uma parte da classe. Será que queremos ser tratados como o lince da Malcata – “uma espécie em vias de extinção”?

“O cinema português não tem público porque não o procura.”
Alberto Barbera, presidente do Festival de Veneza

"Ao Estado e ao Governo não cabe escolher artistas nem ter uma política de gosto. Mas é obrigação do Estado tornar a cultura acessível a todos.”
António Costa, 28.09.15

A nova proposta de lei (PPL) para o Cinema veio provocar, como acontece sempre que se ousa mexer no “sistema”, uma proclamação alarmista de um grupo de profissionais do sector: “O Governo anuncia a morte do cinema português”.

É difícil de compreender este alarido. A lei, se peca por alguma coisa, é por ser tímida. Mas há três boas razões para essas cautelas: 1.ª: nenhum de nós sabe o que será o mundo amanhã – e quando digo “amanhã”, refiro-me à próxima quarta-feira; 2.ª: os efeitos imprevisíveis da covid-19, associados aos do clima e da globalização descontrolada da economia, exigem que qualquer governo responsável estabeleça prioridades – e a protecção da vida dos cidadãos e das suas condições de vida estão acima de tudo; 3.ª: ninguém está em condições de prever o que vai ser a vertiginosa migração do cinema para as novas formas de consumo.

Dito isto, a PPL abre duas portas importantes: pela primeira vez, obriga a que seja o Estado a financiar o ICA – quando, até aqui, as taxas sobre a publicidade que as salas e as TVs eram obrigadas a pagar para a produção de cinema e audiovisual eram desviadas para pagar o funcionamento do ICA!

Se devemos saudar esta coragem, lamenta-se que a Cinemateca, como qualquer Museu, Teatro Nacional ou a Torre do Tombo, não seja paga também, como o ICA, pelo OE. Deste modo, uma instituição cujo papel é preservar os nossos filmes vive de “roubar” verbas que se destinavam a torná-los possíveis!

Por outro lado, a PPL traduz uma Directiva europeia que, finalmente, obriga as novas OTT, como a Netflix e a HBO, e como acontece já com os outros canais de VOD, a investir uma parte das receitas em produção de obras europeias – no nosso caso, em língua portuguesa – por produtores independentes. Cabe, depois, a cada país, negociar esses montantes e a forma de os aplicar. É evidente que a capacidade de Portugal, que é, escandalosamente, o país da Europa com menos espectadores para os filmes nacionais (cerca de 10% da média europeia), a capacidade negocial é curta: estamos a exigir 4% de Investimento Directo e 1% de taxa, tanto como a Espanha (que tem uma indústria e outra projecção internacional). Todos os restantes países, excepto a França e a Itália, et pour cause, estão a exigir menos.

Finalmente, obriga também o YouTube a pagar uma taxa, uma vez que inclui publicidade.

Nenhum cidadão compreenderá, portanto, a razão desta algazarra de uma parte da classe, que levou a que outra parte, onde me revejo, se tenha também manifestado. Este “contar de espingardas”, que dura há várias décadas, só ajuda, sobretudo neste momento, a que a opinião pública se indigne ou alheie de uma guerra que lhes soa como mais uma reivindicação altaneira de uma classe que vive maioritariamente de subsídios.

Ora, o que surpreende é que os profissionais do sector nunca – repito: “nunca” – se tenham indignado, isso sim, por sermos, com a Bélgica e a Roménia, o único país da UE em que o Estado, não só não investe directamente um cêntimo no cinema, mas também, por iniciativa de Passos Coelho, retirou à RTP a “indemnização compensatória”, com que pagava as suas obrigações em matéria de política internacional e de cooperação: a RTP-I e a RTP-África.

E que também nunca tenham protestado contra a perpetuação do paradigma criado pela ditadura do Estado Novo e reforçado pela lei marcelista 7/71, que cometia ao Estado a decisão de usar as taxas que impunha às salas para delegar nuns jurados a escolha dos filmes que o fascismo entendia poderem ser feitos e que, depois, os portugueses mereciam ver! 48 anos de ditadura e 46 anos de democracia é quase um século, em que o cinema português não conseguiu impor outro modelo de intervenção do Estado.

Por fim, duas perguntas à atenção de dois partidos que respeito. Para o BE: “Por que razão gostam tanto do povo e tão pouco do público?” Para o PCP: “Em nome da guerra ao imperialismo americano e às multinacionais, já perceberam que estamos a dar-lhes o mercado e a tirar oportunidades e melhores condições de trabalho para os excelentes profissionais que temos no sector?”

Será que queremos ser tratados como o lince da Malcata – “uma espécie em vias de extinção”?

Cineasta e cidadão

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