A ministra da Justiça tem mesmo de se explicar

Nada justifica que, se há três candidatos habilitados e há uma escolha de um júri independente, o governo português subverta essa escolha. A ministra tem de explicar e tem de se explicar. Que exemplo dá o Ministério da Justiça, se se exime ao juízo de entidades independentes para funções que exigem a mais alta imparcialidade e autonomia?

1. Nos governos chefiados por António Costa não se viu nenhuma reforma relevante na área da justiça. Para lá de uma discreta gestão do quotidiano, a ministra não mexeu em nada de estruturante. Não me refiro aqui, de modo nenhum, às reformas “constitucionais” ou de governo da justiça, que considero importantes mas não urgentes e que exigem um debate mais profundo do que aquele que o PSD já aventou. Reporto-me àquelas outras que são críticas para estimular o investimento no país, para alavancar o crescimento e para fazer, passe-se o truísmo, justiça em tempo razoável aos cidadãos e às empresas. Basicamente, tocar nos factores que podem tornar célere a administração da justiça, à cabeça nas áreas fiscal e comercial, que são cruciais para a economia. Apesar do currículo e do prestígio da ministra, pouco ou nada foi feito. Para os muitos que esperavam da ministra um desígnio e uma visão, a decepção e a frustração dificilmente poderiam ser maiores. Mas, se se olhar para o padrão da governação na área das políticas públicas, esta inércia não chega a ser surpreendente. Com efeito, os governos Costa têm-se distinguido pela ausência de qualquer propósito ou ímpeto reformista. Neste particular, não subsiste pois nenhum motivo para surpresas.

2. A ministra da Justiça tem surpreendido, porém, e muito, no que toca a algumas nomeações recentes. Primeiro, foi a estranhíssima e assaz problemática designação do Conselheiro Lopes da Mota para seu adjunto, a pretexto da preparação da presidência portuguesa da UE. E isto independentemente da competência e das credenciais do conselheiro. Por um lado, porque é sabido que, no passado, foi sancionado por ter tentado demover colegas procuradores a proceder a investigações a José Sócrates. Não há condenações perenes, nem sanções de efeito perpétuo e todas as pessoas, cumpridas as suas “penas”, têm direito a reabilitação. Reabilitação que, neste contexto, está bem espelhada na circunstância de o visado ter ascendido ao lugar de conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

Em todo o caso, e em se tratando do Ministério da Justiça, uma tal nomeação não se pode ter por ética e politicamente recomendável. Por outro lado – e aqui, a meu ver, reside um argumento decisivo sem qualquer reflexo pessoal sobre o visado ou a ministra –, é absolutamente incompreensível que um juiz conselheiro do Supremo possa envergar as vestes de adjunto de um membro do governo. É já controverso que um magistrado de carreira possa abraçar uma função executiva ministerial ou até governativa. Dada a relevância, a visibilidade e o escrutínio da função, não vejo, no entanto, uma objecção de raiz a que um juiz conselheiro ou um procurador-geral adjunto possa ser membro do governo. Gozará aí, apesar de tudo, de uma independência orgânica e de uma posição hierárquica de vértice ou topo que não brigarão com a sua pertença passada e eventualmente futura à magistratura.

Totalmente diferente, e a todos os títulos censurável, é que um juiz do Supremo, a quem se pede o máximo de independência, aceite reduzir-se à condição de membro de um gabinete político ministerial, em que está irredutivelmente sujeito a uma subordinação hierárquica, ainda por cima estribada numa relação de pura confiança política.

Que uma ministra da Justiça, por sinal também conselheira no Supremo, queira ter entre os seus adjuntos um par do mesmo alto tribunal diz muito sobre a sua compreensão e prática da separação dos poderes. Que um juiz do Supremo não tenha nenhum rebuço em se tornar adjunto num gabinete político, diz tudo sobre o modo “instrumental” como vê a sua qualidade de magistrado. Que o Conselho Superior de Magistratura e o próprio Supremo Tribunal convivam pacificamente com esta adulteração dos mais lapidares princípios constitucionais é absolutamente espantoso e chocante.

3. Como se isto não bastasse, a ministra da Justiça, com uma longa e respeitável carreira no Ministério Público, acaba de nos brindar com uma história digna das mais opacas intrigas palacianas. Em cooperação reforçada, 22 Estados da União Europeia lograram criar uma Procuradoria Europeia, que terá um papel crucial no combate ao crime e à fraude em matérias europeias. Muito se espera desta nova estrutura no combate à fraude no uso de fundos europeus ou na evasão em sede de IVA, como ainda ontem destacava o periódico espanhol El Pais.

Pois bem, o recrutamento dos membros nacionais desta Procuradoria Europeia é efectuado em duas fases. Primeiro, o Estado-membro apresenta uma lista de três candidatos, que depois são submetidos a uma avaliação por um júri europeu, composto por personalidades de alto relevo (como, por exemplo, o anterior Presidente do Tribunal de Contas Europeu e actual Presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira). Pois bem, Portugal fez a sua selecção de três candidatos, que se apresentam ao dito júri europeu em condições de igualdade. O procedimento interno de pré-selecção foi atribulado, com definição de critérios posterior à apresentação das candidaturas e com uma (estranha e não suposta) hierarquização das mesmas. O júri europeu classificou, em primeiro lugar, a Procuradora Ana Carla Almeida. Mas, na sua decisão final, o Conselho indicou que afinal seria o Procurador José Guerra a ocupar aquele lugar. E isto por indicação directa do Governo português e da ministra da Justiça.

Nada justifica que, se há três candidatos habilitados e há uma escolha de um júri independente, o governo português subverta essa escolha. A ministra tem de explicar e tem de se explicar. Que exemplo dá o Ministério da Justiça, se se exime ao juízo de entidades independentes para funções que exigem a mais alta imparcialidade e autonomia? Que exemplo de imparcialidade dá a ministra que tantos anos serviu o ministério público e é magistrada no mais alto dos tribunais? Repito, pela terceira vez: a ministra tem de explicar e tem de se explicar.

SIM e NÃO

SIM. Presidente da República. O veto à redução de debates sobre a União Europeia é um grande gesto democrático. As matérias europeias têm um défice de escrutínio parlamentar e público; não um superávite.

NÃO. Lukashenko​. A opressão de décadas na Bielorrússia, a evidente fraude eleitoral e a repressão dos protestos não podem ficar sem uma reacção severa da comunidade internacional e, em especial, da UE.

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