O Portugal silencioso

Independentemente dos méritos e deméritos da resposta dada à crise sanitária e económica, a verdade é que a pandemia veio ressaltar, de novo, os problemas estruturais do país.

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Há um "país silencioso" que não aparece nas manifestações e que deve ser "integrado" PAULO PIMENTA

As causas do atraso português têm ocupado sucessivas gerações de intelectuais desde o século XIX. Mas o país real tarda em conseguir superar esse atraso, apesar dos muitos avanços das últimas décadas.

Os anos mais recentes foram de relativa bonança, com a generalidade dos indicadores económicos a evoluir em sentido favorável até o país se ver a braços com uma pandemia cujas consequências penalizam especialmente uma economia aberta e muito dependente do turismo. Independentemente dos méritos e deméritos da resposta dada à crise sanitária e económica, a verdade é que a pandemia veio ressaltar, de novo, os problemas estruturais do país.

O primeiro-ministro sinalizou a gravidade do momento ao convidar António Costa Silva para preparar um Programa de Recuperação Económica e Social que deverá aproveitar uma “situação fulcral em termos do futuro do país” para “articular uma visão estratégica”. As qualidades do novo “para-ministro” — directamente proporcionais à incompetência com que foi gerido o processo da sua nomeação — devem fazer-nos esperar muito do programa que se anuncia. E por isso é tão importante escrutiná-lo, para que a visão estratégica que orientará a acção do estado nos próximos anos seja de facto abrangente, e faça da resposta à crise uma oportunidade de mudança estrutural para o país.

Simplificando uma discussão bem mais complexa, ao longo dos anos de democracia foram-se consolidando duas explicações para o atraso português. Propostas por intelectuais com uma evidente orientação ideológica, estas duas explicações foram permeando o espaço público e são hoje um lugar-comum entre comentadores de um e outro lado do espectro político-partidário.

À direita domina a tese de Vasco Pulido Valente, segundo a qual os problemas de Portugal se devem à captura do estado pelos interesses de uma média burguesia de funcionários públicos que, desde o Liberalismo, bloqueou sempre qualquer tentativa de reforma capaz de diminuir o seu rendimento e estatuto. É indiscutível a influência desta tese sobre sucessivas gerações de políticos e colunistas mais ou menos liberais.

À esquerda parece dominar a tese de que são as velhas famílias da alta burguesia “estatista e autoritária” quem capturou o estado — ambas as teses atribuem um papel central ao estado na redistribuição dos recursos do país. Essas famílias teriam passado razoavelmente incólumes à mudança de regime em 1974, tendo sido capazes de restabelecer a sua hegemonia ao longo das últimas décadas, ao mesmo tempo que o país assistia à emergência de novos “donos de Portugal”, com destaque para o capital angolano e, mais recentemente, chinês. Ainda que perfilhada por largos sectores da esquerda, esta tese foi desenvolvida sobretudo por um conjunto de intelectuais ligados ao Bloco de Esquerda.

Não vale a pena entrar aqui nas forças e fraquezas das duas teses, que não são tão incompatíveis como muitos parecem crer. Importa sobretudo notar que a discussão sobre o atraso português ainda não prestou a devida atenção à considerável fatia da população que com ele sofre, no dia-a-dia e por toda a vida.

É certo que os altos níveis de pobreza e a baixa escolaridade são muitas vezes invocados como razões do atraso, num discurso dominante que encontramos tanto à direita como à esquerda. Mas esta explicação faz pouco mais do que colar a estas pessoas o estatuto de “desfavorecidos” e legitimar a sua menoridade política. Vivendo regra geral longe da realidade destas pessoas, os intelectuais e os decisores políticos não lhes reconhecem um papel na evolução económica e social do país, nem capacidade para se tornarem, elas próprias, agentes de mudança social e política.

Em 2018 a percentagem de portugueses em risco de pobreza antes de qualquer transferência social era de 43,4%, número que descia para 17,2% após transferências sociais, segundo dados do INE; e mais de 22% dos trabalhadores a tempo completo continuavam a auferir o salário mínimo, segundo um relatório recente do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

Às pessoas com baixos rendimentos, somam-se os quase quatro milhões de portugueses que, segundo os Censos de 2011, viviam em lugares com menos de 2000 habitantes, muitos situados num interior que, para além de cada vez mais despovoado, é ainda pouco desenvolvido, quando comparado com outras regiões periféricas europeias.

Por outro lado, são largos milhares os habitantes dos bairros sociais e dos subúrbios pobres das grandes cidades, ainda que as estatísticas oficiais não permitam quantificá-los. Incluem-se aqui também as comunidades de afro-descendentes, cigana e de imigrantes, objecto de uma crescente atenção mediática que urge transformar num debate sério e consequente, capaz de lhes reconhecer o direito (histórico e de cidadania) a serem parte da sociedade portuguesa.

Neste Portugal silencioso misturam-se duas realidades diferentes: a pobreza e a periferia, que se potenciam mutuamente e estão muitas vezes associadas. Acima de tudo, caracterizam uma parte importante da população que tem uma incapacidade crónica para fazer ouvir a sua voz. Não porque não tenha o que dizer, mas porque o sistema político português não tem tradição de ouvir estas pessoas, não foi desenhado para tal, nem parece interessado em fazê-lo.

É indiscutível que o regime democrático acelerou a mobilidade social e deu à classe média acesso ao poder, ainda que excessivamente filtrado pelas máquinas partidárias. É das classes médias que provém a grande maioria das pessoas que hoje ocupam cargos públicos, das câmaras municipais ao parlamento, passando pelo governo, e que desempenham funções de relevo nas magistraturas, nas forças armadas, na administração pública, nas universidades, escolas e hospitais. E se é verdade que muitos políticos e altos funcionários são ainda oriundos do interior, foram quase sempre forçados a migrar para Lisboa, Porto ou Coimbra.

Estas pessoas distinguem-se, independentemente de serem ou não filhos de pais de classe média, por terem sido capazes de aceder a uma educação de nível superior; e pela aspiração a copiar os de cima e o medo de serem confundidos com os de baixo, uma aspiração e um medo só reforçados por uma sociedade que continua a cultivar os marcadores de distinção social, como se eles dissessem alguma coisa das qualidades intrínsecas de cada um de nós.

Resulta daqui que a maioria daqueles a quem cabe gerir a coisa pública — falo de pessoas concretas, não de instituições — acabam por agir e tomar decisões excessivamente condicionadas por uma visão segmentada da sociedade e por uma experiência quotidiana limitada à vida nos bairros de classe média das grandes cidades.

Não é outra a explicação para a decisão do Ministério da Educação em não reabrir as escolas antes do próximo ano lectivo, demitindo-se de começar já a remediar as consequências dos meses de confinamento para os alunos com menos recursos e para as famílias cujos pais não se podem dar ao luxo do teletrabalho.

Olhando para fora, da já longínqua campanha pelo “Brexit” aos recentes protestos do movimento Black lives matter, passando pelos movimentos populistas da Europa de Leste, a América de Trump ou o Brasil de Bolsonaro, os tempos de relativa hegemonia das classes médias sobre as democracias liberais ocidentais parecem estar a chegar ao fim, por força de uma crescente desigualdade.

Não nos enganemos com dicotomias aparentemente simples. Por muito diferentes que sejam os pressupostos ideológicos de uns e de outros, os votos em Donald Trump por parte de comunidades brancas ultraconservadoras e empobrecidas (cada vez mais uma minoria nos Estados Unidos), ou o apoio dado ao “Brexit” pelas populações condenadas à degradação dos serviços públicos e da economia nas áreas mais periféricas de Inglaterra e do País de Gales, têm em comum com as manifestações que se seguiram ao assassinato de George Floyd a vontade de reclamar maior atenção por parte das autoridades para determinados grupos que procuram ter uma voz própria no espaço público.

É evidente que há uma enorme diferença entre o discurso de ódio, medo e divisão do populismo e as legítimas aspirações de largos sectores da população que se sentem, porque o são, deixados para trás, quando não agredidos. Mas é precisamente deste sentimento de abandono que os políticos populistas se alimentam.

Em Portugal o fenómeno tardou a chegar, mas chegou, com algumas figuras messiânicas a emergirem no espaço público (tanto na política como no futebol, curiosamente) e a capitalizarem medos, preconceitos e ressentimentos de vários sectores da sociedade. O espectro partidário está agora mais fragmentado e tudo indica que a tendência só irá aprofundar-se, como já estamos a ver em Espanha, o que significa que os movimentos populistas terão cada vez maior capacidade de representação.

Num país em que uma larga franja da população continua sem efectiva representação política, é urgente criar as condições para que esse vazio não seja preenchido por políticos que, para além de soluções fáceis para problemas complicados, só têm a propor-nos egos vazios e interesses obscuros a quem não convém de todo resolver os problemas que afligem o seu próprio eleitorado.

A uma tal ameaça os poderes instituídos parecem só saber dar a velha resposta caudilhista. As interrogações em torno da saída de Mário Centeno do Governo confirmam a impressão que esta legislatura fica marcada, desde o início, pelo reforço da autoridade do primeiro-ministro através da colocação em lugares-chave de pessoas da sua confiança pessoal, em detrimento de governantes independentes. Já o Presidente da República parece ter-se tornado refém da própria popularidade, condicionando o seu poder moderador à perspectiva de uma reeleição apoteótica e de um falso unanimismo.

Face à incapacidade do sistema político português em ultrapassar a fulanização e o jogo de egos, há todo um país, com comunidades muito diversas e nem sempre fáceis de discernir, à espera de representação em Portugal. Não de passeatas folclóricas e aparições mediáticas, com beijinhos, abraços e selfies à mistura, mas de efectiva representação, baseada num trabalho sério de auscultação, análise, reflexão e decisão.

Os decisores públicos não podem deixar de se aconselhar, como sempre fizeram, com pessoas qualificadas nas diversas áreas da governação, oriundas tanto do sector privado como dos quadros competentes que, apesar do depauperamento das últimas décadas, continuam ao serviço da administração pública.

Mas o tempo político que vivemos tornou urgente dar voz às pessoas menos privilegiadas, que não sabem como fazer-se ouvir. Isto implica ir activamente ao seu encontro, escutá-las de igual para igual, sem falsos paternalismos, e depois orientar a governação para responder às suas necessidades. Mesmo quando estas colidam, como inevitavelmente acontecerá, com os interesses de outros sectores da sociedade.

Este é o grande desafio de quem tem responsabilidades públicas no Portugal de 2020. Nenhum programa de recuperação ou visão estratégica para os próximos anos pode ignorar a necessidade de integrarmos finalmente o país silencioso. Depois de quase 50 anos de democracia, é chegado o tempo dele.

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