Escravatura, abolicionismo e racismo anti-negro em Portugal

É o complexo legal que resulta dos tratados abolicionistas entre Portugal e o Reino Unido, primeiro na década de 1810, depois em 1842, que lança as bases do sistema racial português moderno.

O movimento Black Lives Matter trouxe para o centro do debate político as histórias do tráfico de africanos escravizados, do abolicionismo e da formação dos diversos sistemas raciais modernos a partir dos antigos sistemas escravocratas. O contexto português não tem sido exceção. Contudo, seguramente devido à atrofia da historiografia sobre o tema que herdamos do Estado Novo, vão sendo veiculadas uma série de confusões conceptuais, às quais por vezes não escapam alguns especialistas nacionais sobre a abolição e o tráfico. Urge deslindar os conceitos de escravatura, tráfico de pessoas escravizadas, racismo e anti-negritude, de forma a que estes se tornem operacionais e nos possibilitem perceber as origens e os contornos do sistema racial português. Mais do que um exercício académico, este discernimento deve preparar a tomada das medidas de reparação justamente exigidas pelas comunidades Negras nacionais.

Dois focos de discórdia estão na origem dos deslizes mais comuns. O primeiro, prende-se com a forma como deve ser encarada a preponderância histórica que agentes associados ao império português tiveram no tráfico negreiro. O segundo, com a maneira como devem ser interpretadas as distintas fases do abolicionismo português. Sendo impossível negar o papel de destaque que os navios registados com pavilhão português desempenharam no tráfico, a primeira polémica depende do cruzamento deste dado com outras estatísticas igualmente relevantes. João Pedro Marques, por exemplo, refere em entrevista recente que, em meados do século XIX, viviam “4 milhões” de negros escravizados nos Estados Unidos, enquanto que, no Brasil, viveriam pouco mais de “um milhão”. Apesar de o autor interpretar este dado como prova de Portugal não ter sido “a maior potência esclavagista”, a verdade é que esta estatística em nada contesta a preponderância portuguesa no tráfico, o truísmo que Marques se propõe refutar. Não caindo no erro de confundir o que na época se designava ‘tráfico da escravatura’ com a ‘escravatura’ propriamente dita, o cruzamento de dados relativos a ambas as realidades levanta uma questão mais interessante do que a do apuramento da posição relativa de Portugal no ranking dos esclavagistas.  

De acordo com o site slavevoyages.org, o número total de africanos escravizados transportados para os portos brasileiros ronda os 2.281.000, para o conjunto do Sudeste; 1.568.000, para a Bahia; 818.000, para Pernambuco; e, finalmente, 144.000 para a região da Amazónia. Comparem-se estes dados com os números totais destinados aos Estados Unidos: 210.000 para a região da Geórgia e das Carolinas; 22.000 para a Costa do Golfo. Cruzando esta informação com a estatística referida por Marques, a questão que exige resposta passa a ser esta: ‘como explicar um decréscimo tão acentuado da população negra brasileira?’ O desequilíbrio demográfico e as condições brutais a que eram (são?) sujeitos os negros no Brasil explicam esta discrepância. O que fica por explicar, porém, é porque sendo os negros escravizados considerados ‘propriedade’ em ambos os contextos, nos Estados Unidos os seus supostos ‘proprietários’ cuidavam melhor da sua reprodução demográfica e social. A preponderância portuguesa no tráfico atlântico proporciona uma resposta óbvia: a oferta de novas levas de africanos escravizados, a preço relativamente baixo, tornava-os descartáveis.

Nos Estados Unidos, devido à distância geográfica em relação aos principais portos de África, e ao facto de não existir uma continuidade política e fiscal transatlântica, como aquela que unia Benguela, Luanda, Pernambuco e a Bahia, a reprodução social dos negros escravizados tinha preferencialmente lugar em solo americano. Contrariamente, o sistema escravocrata português dependia do grande fluxo proporcionado pelo tráfico atlântico e do genocídio constante dos negros no Brasil (associado à manumissão de uma franja ‘tampão’ da população). Dependia, também, da cooptação, mais ou menos coerciva, de Estados africanos, responsáveis pela reprodução social dos escravizados e pelas primeiras etapas da sua escravização, ainda no continente. O sistema português, por outras palavras, era tripartido. Não tendo este facto em conta, quaisquer comparações entre o esclavagismo português e outros, clássicos ou contemporâneos, são espúrias.   

O segundo foco de discórdia prende-se com a forma como deve ser entendida a relação do abolicionismo com a instalação dos sistemas raciais modernos. Se Marques, na já referida entrevista, defende que é na escravatura que o racismo contemporâneo tem origem, pelo que o “mundo deve agradecer às nações abolicionistas”, a verdade é que muitos outros autores, desde José Capela a Saidiya Hartman, apontam com pertinência para o facto de que formas de coerção ideológica e institucional apenas ganham preponderância histórica quando, no quadro do abolicionismo, a coerção física violenta deixa de ser uma alternativa viável. Por outras palavras, se ainda vigorasse o antigo sistema escravocrata, com as suas correntes, chicotes, pelourinhos e capitães do mato prontos a fazer valer a distinção entre livres e escravizados, a exploração do trabalho de pessoas negras não dependeria da institucionalização do racismo sistémico. O sistema racial moderno substitui o anterior sistema escravocrata e, se é verdade que o extingue, fá-lo apenas quando são criadas as condições para a perpetuação das relações de poder que o caracterizavam.

Assim, não é surpreendente que, no império português, o abolicionismo se alicerce na anti-negritude, uma forma de racismo especificamente dirigida contra negros e que depende da sua desumanização total. Não é só, portanto, no discurso cripto-abolicionista do Padre António Vieira que uma crítica à escravatura indígena se articula com a desumanização dos negros. A mesma tendência pode ser descortinada nos alvarás pombalinos das décadas de 1760 e 1770, que, ao enquadrarem a progressiva abolição da condição de escravo no território metropolitano, o fazem como incentivo à transferência de pessoas negras escravizadas para outras províncias do império, a fim de poderem ser mais bem exploradas. Contudo, é o complexo legal que resulta dos tratados abolicionistas entre Portugal e o Reino Unido, primeiro na década de 1810, depois em 1842, que lança as bases do sistema racial português moderno. O tratado de 1842 prevê, nos seus anexos, a forma como os navios negreiros capturados pelos cruzadores britânicos e portugueses deveriam ser desmantelados, dando conta do destino dado a cada uma das suas partes. Atendendo à forma como estas regulações foram postas em prática, facilmente percebemos como o racismo anti-negro é anterior à luta de classes no cerne da nova sociedade liberal burguesa.

Quando um navio negreiro era apreendido e julgado ‘boa preza’, era de seguida posto em hasta pública juntamente com a sua carga, sendo o valor obtido distribuído posteriormente entre as tripulações dos navios responsáveis pela captura. Esta divisão deu origem a várias perversidades. Se, por um lado, os praças marinheiros (oriundos das classes mais baixas) amiúde reclamavam maiores porções do bolo total, entrando assim em conflito com os oficiais (das classes altas), a verdade é que todos aceitavam que os africanos escravizados apreendidos fossem tidos como uma parte da carga. O seu conflito de classe era posterior ao seu consenso anti-negro. Todos aceitavam tratar africanos escravizados como objetos. Estes últimos eram leiloados à parte e, depois de ‘libertados’, ficavam obrigados ao trabalho forçado e na posse de documentos como este, lavrado para Sebastião da Costa, em 1860, e que se conserva em cópia no Arquivo Histórico da Marinha: “Sebastião da Costa, de cor preta, filho de Sebastião da Costa, natural de Moçâmedes. Cabelo carapinha. Olhos pretos. Altura 58 polegadas. Cozinheiro”. Este documento revela-nos o racismo científico no seu estado embrionário. Sebastião da Costa conseguiu deixar de ser ‘escravo’ fugindo de Angola para Lisboa, a bordo da Corveta Estefânia. Contudo, ao aqui desembarcar, Sebastião descobriu-se negro num país abolicionista que, porém, fundamentou a sua ordem pública liberal na exclusão dos negros da categoria dos humanos de pleno direito.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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