Londres está a renegar compromissos assumidos nas negociações do “Brexit”, acusa Barnier

Negociador europeu insiste que os termos da declaração política anexa ao acordo de saída são “a única referência válida” para o estabelecimento de um acordo comercial ambicioso. Quarta ronda negocial termina sem quaisquer avanços.

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"Não vamos aceitar retrocessos na declaração política", frisou Michel Barnier EPA

Michel Barnier começa a mostrar alguns sinais de impaciência e exasperação. “Ronda após ronda”, os responsáveis britânicos têm tentado renegar os compromissos assumidos na declaração política anexa ao acordo de saída do Reino Unido da União Europeia e distanciar-se dessa base comum fixada para o estabelecimento de uma nova parceria política e económica pós-“Brexit”, denunciou esta sexta-feira o líder da equipa negocial europeia.

No final de mais uma semana de conversações por vídeoconferência que não produziram quaisquer resultados, Barnier quis ser “muito claro” — “A falta de progressos na negociação não tem a ver com o método, mas com a substância”, afirmou. E também “muito específico” nas suas críticas à postura da equipa britânica, que continua a recusar discutir algumas questões, como por exemplo garantias em matérias de direitos fundamentais para a cooperação judicial, de segurança e defesa, ou um novo acordo estável para o acesso recíproco às águas de pesca. “Continuo sem perceber porquê”, desabafou Barnier, para quem não faz muito sentido que as negociações prossigam nestes termos.

“Não houve nenhum progresso significativo desde o arranque das negociações e não podemos continuar eternamente assim”, considerou o negociador da UE, lembrando que o “momento da verdade está a aproximar-se”, numa referência à reunião de alto nível que terá de acontecer até ao fim deste mês para fazer um ponto de situação do progresso das negociações e da eventual necessidade de prolongar o actual período de transição do “Brexit” por mais um ou dois anos.

A data e o formato desse encontro ainda não foram acertados: não existe, para já, nenhuma certeza de que essa reunião, entre o primeiro-ministro, Boris Johnson, e os presidentes da Comissão e Conselho Europeu, Ursula von der Leyen e Charles Michel, possa acontecer presencialmente.

Parece cada vez mais certo que só uma intervenção política superior permitirá desbloquear as negociações técnicas, uma vez que as duas equipas negociais ainda não conseguiram fechar um acordo em nenhuma das 12 discussões que decorrem em paralelo. “Registamos algum progresso, mas penso que estamos perto do limite do que se pode alcançar com este formato de rondas negociais remotas. Para sermos bem-sucedidos, temos de intensificar e acelerar o nosso trabalho”, considerou o negociador do Reino Unido, David Frost. “Precisamos de uma nova dinâmica política”, concordou Barnier.

Mas na sua opinião, é preciso acima de tudo que o Reino Unido respeite os seus compromissos e pare com as suas reviravoltas em relação a uma série de objectivos vertidos na declaração política para a relação futura, que foi “negociada pessoalmente pelo primeiro-ministro, Boris Johnson”, e permanece “a única referência válida e o único precedente na negociação” de um acordo comercial ambicioso e uma parceria política estreita. “Não vamos aceitar nenhum retrocesso na declaração política”, garantiu.

Londres tem uma interpretação ligeiramente diferente. Pouco depois de Barnier falar em Bruxelas, um porta-voz de Downing Street veio oferecer uma espécie de contraditório das suas palavras, embora não exactamente um desmentido. Os negociadores britânicos têm todo o interesse em “respeitar os parâmetros negociais estabelecidos na declaração futura”, garantiu, mas existe uma diferença de opinião com a UE sobre a necessidade de seguir à risca e cumprir estritamente as disposições desse documento.

Barnier destacou o parágrafo 77, onde o Reino Unido concordou que dada a sua proximidade geográfica e interdependência económica da UE, continuaria a aplicar as actuais regras de concorrência, nomeadamente de ajudas de Estado, bem como os standards sociais, ambientais e fiscais vigentes, para assegurar o comércio sem fricções (isto é, sem quotas nem tarifas) entre os dois blocos.

Nas negociações, o lado britânico recusou manter o seu compromisso de evitar e prevenir distorções ou vantagens competitivas injustas. “Certamente não estamos dispostos a negociar linha a linha as questões relacionadas com o level playing field”, afirmou a mesma fonte do Governo britânico. Mas a UE jamais assinará um acordo de livre comércio que não assente no princípio de “fairplay” económico. “As condições para o acesso o nosso mercado foram definidas de forma muito clara e não mudaram desde o início. Não porque seja um dogma, mas porque disso dependem milhões de postos de trabalho”, vincou Barnier.

E não é só nestas questões que o Reino Unido está a tentar ir contra os compromissos assumidos na declaração política. Barnier apontou ainda o parágrafo 66, sobre a manutenção dos standards de segurança nuclear; o parágrafo 82, que cobre as operações anti-branqueamento de capitais ou o parágrafo 112, relativo à arquitectura interinstitucional do futuro acordo de parceria — tudo matérias em que, lamentou, “estamos muito longe dos objectivos definidos”.

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