Dia 42: Nenhum de nós consegue deixar de sofrer com o sofrimento desta criança
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.
Querida Filha,
Tinha prometido a mim mesma que não escrevia sobre a criança torturada e morta, tudo indica que pelo pai e pela madrasta, mas aqui estou.
Infelizmente, estes momentos trágicos transformam-se rapidamente num circo mediático, em que a linha entre o dever de informar e a exploração da morte de uma criança se torna muito ténue, e não queria ser mais uma voz a falar de um caso que não conheço, fazendo juízos e passando sentenças. Não quero entrar no rol dos que o usam para fundamentar os seus preconceitos, nem tão-pouco subscrever o depoimento do vizinho que “percebeu tudo” pela expressão demasiado calma do alegado assassino, nem assemelhar-me à tia da prima que pressentiu o que ia acontecer (mas não fez nada), nem tão-pouco fazer a figura do senhor que afirmou que “Nem a menina nem a nossa terra mereciam um crime assim” e, no entanto, acabo por ser a prova do quão difícil é estar calado perante uma monstruosidade como esta.
Nenhum de nós consegue deixar de sofrer com o sofrimento desta criança, mas simultaneamente de nos procurarmos distanciar de quem foi capaz de cometer esta barbaridade — daí as multidões ululantes à porta dos tribunais, sedentas de fazerem justiça pelas suas próprias mãos, dizendo ao mundo e a si mesmos que seriam incapazes de tamanha atrocidade.
Infelizmente, a violência cometida contra as crianças acontece na grande maioria dos casos, quase a totalidade, no seio da própria família, ao contrário do que queremos desesperadamente acreditar, porque é infinitamente mais fácil aceitar que o agressor seja um “estranho”, um desconhecido, do que um pai ou uma mãe. Queremos muito pensar que nas famílias as pessoas podem perder a cabeça, discutir e zangar-se, mas nunca ao ponto de provocarem dano àqueles que mais amam, e defendemos essa convicção a todo o custo. Embora lá no fundo, no fundo, não tenhamos a certeza absoluta.
Mas então o que podemos fazer? Desconfiar de tudo e de todos, inclusive dos que nos rodeiam? É impossível viver assim, e é por isso que a prevenção de maus tratos é tão difícil, o nosso cérebro faz tudo para readquirir a sensação de segurança e controlo. Por isso é que nesta área precisamos tanto de especialistas, treinados a distinguir os indícios que devem ou não ser valorizados, capazes de avaliar com um forte grau de certeza se uma criança deve ser retirada àqueles pais, àquela família, prevenindo a tempo. Técnicos que mantêm a compaixão e a empatia, que não analisam os casos com base na sua experiência e traumas pessoais, mas com ciência. E, por fim, com a capacidade de empatizar com a criança, em lugar de se pôr no lugar do adulto — são exemplos de maus profissionais, mas já ouvi pessoalmente um juiz defender a institucionalização de crianças dizendo, “A minha mãe colocou-me numa instituição, mas não me fez mal nenhum, pelo contrário, veja aonde cheguei?”, e escutei uma técnica da Segurança Social a explicar-me num tom consolador que não me angustiasse tanto porque “Estas crianças não são como os nossos filhos”, para só citar alguns. E também é necessária a coragem de agir, em lugar de adiar, esperar para ver, tomando decisões quase impossíveis, tal o receio de estar a pecar por excesso, de estar a ser injusto.
Não são ingredientes fáceis de encontrar numa única pessoa, daí a necessidade do trabalho em equipas multidisciplinares, na certeza, porém, de que haverá sempre erros e crianças que escapam pelas malhas da rede, mesmo que todos dêem o seu melhor. É claro que não podemos conformarmo-nos a que assim seja, porque o sofrimento e a vida de cada uma destas crianças exige que não nos conformemos, mas também não podemos apedrejar quem todos os dias dá o seu melhor. Nem, muito menos, atacá-las hoje porque, bandidos, retiraram uma criança aos pais, e, no dia seguinte, atacá-las porque não perceberam a tempo o risco que ela corria. Sempre, comodamente, fora da equação, juízes de bancada, mesmo quando não mexemos uma palha pelas famílias e crianças que vivem ao nosso lado, que estão neste momento confinadas em espaços pequenos, no seio de famílias desempregadas e sem recursos psicológicos para lidar com toda esta tensão acrescida. Não é desculpa para qualquer violência contra os seus filhos, mas também não nos desculpa os ouvidos de mercador.
Esta carta já vai demasiado longa e ainda tenho tanto para dizer, só podia estar a brincar comigo mesma quando imaginava possível manter-me calada. Mais três coisas que no meio de tudo isto me indignam:
- Os que aproveitam estas tragédias para reforçar a sua própria convicção de que os pais são todos potenciais maltratantes. Homicidas, mesmo. Quando é a mãe que maltrata ou mata, alegam que foram levadas a fazê-lo por um qualquer homem que as violentou, como se as atenuantes fossem um exclusivo para mulheres.
- Os que aproveitam estas tragédias para falar no regime de guarda das crianças, como se o caso da infeliz Valentina viesse garantir a priori que todas as queixas que as mães apresentam contra os pais em processo de regulação das responsabilidades parentais são verdadeiras, e que, seja como for, a criança está invariavelmente mais segura com a mãe.
- Os que expõem crianças a pretexto de defenderem crianças. Neste caso, revelando o conteúdo do testemunho à polícia do filho de 12 anos, reiterando que o seu “lapso” terá sido fundamental para a incriminação da mãe e do padrasto. Quem se comove tanto com o que aconteceu à menina assassinada não tem o menor escrúpulo em arcar a previsível condenação da mãe aos ombros do filho. Tenham vergonha.
E agora calo-me.
Querida Mãe,
Ámen.
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram