Em resposta ao artigo de opinião A saúde mental para lá da pandemia, de Bárbara Almeida

Resposta do realizador Vicente Alves do Ó ao artigo de opinião da Bárbara Almeida, A saúde mental para lá da pandemia, publicado na secção P3 do jornal PÚBLICO, no dia 22 de Abril de 2020.

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Foi com alguma surpresa e apreensão que li o comentário que a doutora escreveu no jornal PÚBLICO sobre a série da RTP1 – Solteira e Boa Rapariga. Dito isto, foi com algum sobressalto ao ponto de ponderar uma consulta via Skype com a minha psicoterapeuta. É que aos olhos da sua escrita e do seu raciocínio, a Solteira e Boa Rapariga cometia um dos pecados capitais para qualquer argumentista ou escritor: criar um mal-entendido onde apenas residiam boas intenções.

Esclarece a doutora que a má utilização de termos e condições relativos à saúde mental é prolongar na sociedade e no tempo uma ideia distorcida e estereotipada da doença mental que afecta Portugal em doses superlativas para não dizer trágicas. E tem toda a razão. Concordo inteiramente consigo. A doença mental é um caso sério em Portugal e precisamos urgentemente duma política nacional muito mais concertada. Mas, acima de tudo, que chegue às pessoas que teimam em olhar para a saúde mental como tabu.

Tendo conhecimento ou sendo muito sensível ao assunto, achei por bem colocar uma personagem na série Solteira e Boa Rapariga, neste caso uma psicoterapeuta, que nos aproximasse do assunto, melhor dizendo, normalizasse a atitude face um tema tão difícil de pronunciar por tanta gente. Esta personagem, a Dra. Dalila, serve e serve-se do humor disparatado para convencer a nossa heroína Carla Maria a encontrar o amor e felicidade. Mais não seja, para que resolva uma velha paixão por um homem que a abandonou há dez anos e no processo viver muitas aventuras. Aventuras essas que nunca prejudicam o desfecho das intenções iniciais, mas acentuam um sentimento que deve prevalecer quando se trata de assuntos difíceis: a compaixão.

Mas há uma questão que me perturba. A doutora diz no texto que a arte pode servir de ansiolítico. Não acha um pouco desmerecedor? Diminuir a importância considerável de uma “actividade” que ao longo da História da humanidade nos tem feito sobreviver porque é isso que a arte faz – a arte promove a nossa sobrevivência como espécie apontando o futuro, rasgando o imponderável e, acima de tudo, construindo através do riso e da compaixão uma ideia de sociedade possível em que a barbárie vai sendo erradicada.

A arte serve-nos de ponte com a dor, a morte, a falha, o amor, o ódio e o desespero. Se retirássemos todos os ditos “assuntos sérios” da arte e da ficção (seja ela televisiva, cinematográfica ou literária), a arte ficaria reduzida porque a sua importância estaria desvirtuada. Ficaria fora da vida e ficando fora da vida, serve para muito pouco. A arte serve, pelo contrário, para nos afirmar, para nos convencer que existimos, para falar por nós e para nos dar voz e muitas vezes para nos dar a mão nos piores momentos. E o riso ainda é uma dessas facetas que misteriosamente melhor alcança as pessoas. Eu não consigo imaginar o mundo sem o Chaplin. Consegue? E o Chaplin fez humor com a pobreza, a exclusão e até com ditadores. Porque uma das coisas que o riso faz é exactamente aproximar as pessoas das suas fobias, dos seus fantasmas, da sua natureza.

A Dra. Dalila, as loucuras da Carla e afins não são mais do que isso, uma maneira de falar de tudo: da doença, do tabu, do medo, do riso, da realidade, da ficção, da vida. Porque no fim o que todos queremos é que alguma coisa, de alguma maneira, convença uma pessoa com doença mental a dar o primeiro passo e procurar ajuda. E o riso pode ser uma maneira. A doutora depois fará competentemente o seu trabalho. O meu é este. Contar histórias onde caiba toda a humanidade.

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