Um silêncio pacífico

Testemunho do padre Francisco Mota. “É muito contra-intuitiva esta questão de o acto de coragem a que somos chamados neste momento ser estar em casa e evitar o contacto social. Todo o nosso treino é no sentido contrário: estar junto dos doentes, dos pobres, arriscar.”

Foto
Rui Gaudencio

Moro no centro da cidade de Lisboa, na fronteira entre o Bairro Alto e o Chiado. Somos seis padres aqui em casa, com idades entre os 78 e os 32 anos. Normalmente temos vidas activas: uma paróquia na Baixa, aulas na faculdade, a capelania da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, conferências para dar e textos para escrever, mais uma série de coisas que enumeradas poderiam parecer exagero. Além disso, temos um centro cultural recém-aberto (a Brotéria) com uma galeria, uma biblioteca, programação de conferências e cursos, uma revista de cultura centenária, etc... O dia-a-dia costuma ter um ritmo rápido.

A minha rotina nestes dias de isolamento tem muitas coisas que se mantêm: continuo a ter reuniões, e-mails para responder, relatórios para escrever, financiamentos aos quais concorrer. No que toca ao trabalho de escritório, sobretudo no que diz respeito à Brotéria, o ritmo continua a ser rápido. Em rigor, talvez seja até mais rápido do que o habitual. Afinal, muitos de nós estamos em casa e o trabalho que já fazemos habitualmente ajuda a trazer segurança no meio de tempos tão incertos.

Dito isto, a verdade é que há rotinas que mudam. Há coisas que tenho deixado de fazer: não há jiu-jitsu, não estou a dar aulas, não tenho estado com os meus pais, irmãos e sobrinhos. São perdas que fazem parte destes dias e que, de alguma forma, serão comuns a todos nós. Mas há também coisas que tenho começado a fazer. Tenho finalmente conseguido começar a pôr ordem numa biblioteca de 160 mil volumes que precisava de trabalho. Tenho entrevistado os outros jesuítas cá de casa sobre aquilo em que andam a pensar. Tenho falado com um conjunto incrível de artistas que aceitaram colaborar num projecto digital que a Brotéria lançou para este período. A minha tendência quando estes dias de isolamento começaram foi pensar naquilo que me dava pena perder. À medida que o tempo passa, sem falsos lirismos, vou percebendo que preciso de desenvolver uma atenção mais alargada que me permita valorizar os ganhos. A consciência de que no isolamento há coisas que estão a ser construídas ajuda-me a olhar este tempo com confiança no futuro.

Dentro das rotinas que mudam, há uma na qual tenho pensado permanentemente. Há já vários dias que não vou à minha igreja, o que significa que há já vários dias que não vejo as pessoas que normalmente me batem à porta por não terem outro sítio onde bater. Conheço muitos pelo nome e sei que este será um tempo de ferida para quase todos. Custa-me não estar perto e anseio pelo dia em que poderei voltar a vê-los. É muito contra-intuitiva esta questão de o acto de coragem a que somos chamados neste momento ser estar em casa e evitar o contacto social. Todo o nosso treino é no sentido contrário: estar junto dos doentes, dos pobres, arriscar, etc.. Se a quarentena custa, é por causa deles e não por minha causa. Não poder fazer isso tem sido exigente. Por isso, espero que todos estes estejam bem. Rezo para que estejam bem. Na missa que diariamente celebramos cá em casa ao final do dia (e que transmitimos pelo YouTube – coisa tão estranha!), é sobretudo deles que me lembro.

Termino com esta nota: no centro da cidade, estes têm sido tempos de um silêncio surpreendente. Há pouco ruído. E este silêncio, embora deixe escapar aqui e ali algumas notas de ansiedade, tem sido em geral um silêncio pacífico. É difícil de explicar, mas é impressionante de ver. É um silêncio que, entre outras coisas, permite ler. Permitiu-me, por exemplo, regressar à Odisseia e perguntar-me sobre a inevitabilidade de conviver com o inesperado. Permitiu-me também regressar a Gilead, de Marilynne Robinson, e perceber que é possível ter fé na cidade — que é o título de um livro magnífico de Tiago Cavaco. Há silêncios que assustam. No centro da cidade, este silêncio, até ver, pacifica.

Sugerir correcção
Comentar