A Solenidade da Alta Cultura

Tento, o melhor que posso, perceber se isto é mesmo cultura. Saio. Jamais saberei. A alienação pode ser libertadora. Continuarei a ser convictamente inculto. Sinto-me em casa na rua.

Um evento solene, decididamente. O autor, rodeado pelos seus mais fiéis seguidores, pausa antes de iniciar a apresentação da sua obra. Os parcos segundos que antecedem o acto de fala servem como uma espécie de preâmbulo, magistralmente concebido para conferir à obra uma áurea de grandiosidade que envolve e implica carinhosamente o próprio e os seus súbditos. Os presentes, embevecidos mas atentos, contorcem-se freneticamente nas cadeiras pouco confortáveis. Estas torturas mesquinhas, implacavelmente impostas a estes sonâmbulos irrequietos da “indústria da cultura” (Adorno), relembram a todos os presentes que o real permanece renitentemente imóvel, mesmo quando sujeito à força inexorável da artificialidade.

A austera coreografia prussiana prossegue. O autor começa a falar. Os meninos e as meninas calam-se. Entramos no dojo. Os movimentos bocais são precisamente calculados e as posturas meticulosamente calibradas para a ocasião. O olhar circunspecto do devidamente ornamentado pseudo-depressivo cruza-se brevemente com o olhar rebelde do burguês insurrecto que procura na cultura o que não conseguiu encontrar na sua ultima viagem ao Serengeti. Tudo isto tresanda a autenticidade e eu, inculto incorrigível que sou, sinto-me como um byte assexuado num mundo pré-analógico. Reparo, com grande consternação, que há muito deixei de ouvir o autor e as suas lamentações filosóficas. O evento capturou-me mas extraditou o autor para uma terra de ninguém que nunca visitei. O autor fala de si como se o eu dele fosse um mundo infindável de interioridades obscuras e indecifráveis. Um Hitchcock idealizado, sozinho na aridez da sua subjectividade. Tento, o melhor que posso, perceber se isto, esta coreografia frívola e absurdamente ridícula, é mesmo cultura. Saio. Rapidamente. Jamais saberei. A alienação pode ser libertadora. Continuarei a ser convictamente inculto. Sinto-me em casa na rua.  

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