Li Wenliang, o Inimigo do Povo

Talvez Li Wenliang apenas se tenha preocupado com a propagação do vírus biológico, mas este é também um vírus político, cuja deflagração é importante combater o quanto antes.

Em 1882, o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen publicou uma das suas obras mais conhecidas: Um Inimigo do Povo. No drama, Dr. Thomas Stockmann, um médico incumbido de assegurar a qualidade sanitária de umas termas, muito rentáveis, descobre que as águas estão contaminadas. Por se tratar de um risco sério de saúde pública, o responsável clínico pretende divulgar o facto no jornal o Mensageiro do Povo, mas a sua vontade colide com os interesses do líder político local. Este, tudo fará para evitar a denúncia, prejudicial para os seus objetivos políticos. A obra coloca em evidência o dilema da verdade como ameaça, a confrontação entre os valores individuais e os interesses coletivos, a manipulação da opinião pública, a ética e o poder.

Nada melhor podia ilustrar a obra de Henrik Ibsen do que o caso da epidemia 2019 nCov, vulgarmente conhecida como coronavírus. Trata-se de um vírus mortal que surgiu na cidade de Wuhan, uma metrópole chinesa com 11 milhões de habitantes. Ao que parece, esta epidemia resulta da transmissão animal aos humanos, desenvolvida em mercados com pouco controlo sanitário. Carnes de animais exóticos, como o pangolim, muito apreciadas na China, são comercializadas nestas condições. O aparecimento de um surto de casos de pneumonia levou o médico Li Wenliang, que trabalhava no hospital de Wuhan, a lançar um alerta na internet. A verdade é que depois da publicação, Li Wenliang foi detido pela polícia chinesa e acusado de “espalhar rumores”. As autoridades rapidamente apagaram os vestígios de um possível alarme social, num país com uma máquina de propaganda muito assertiva. E, para evitar quaisquer ousadias, nada melhor que usar a fórmula “matar a galinha para ensinar o macaco”.

Li Wenliang não se amedrontou, provavelmente fez o que a sua consciência ditou. O mesmo está a acontecer com jornalistas que reportaram o caso, ou mais alguém que no meio da multidão vai dizendo que o rei vai nu. Ativistas, advogados, médicos são facilmente transformados em inimigos do povo, desaparecem sem deixar rasto. O país mudou, mas o sistema permanece fechado, autoritário, opaco, sem liberdade de expressão e sem independência da justiça. Vai funcionando a distopia orwelliana, em que a opinião individual dos cidadãos representa muito pouco face aos imperativos do coletivo. Por outras palavras, o que importa salvar é a colónia, pouco vale a formiga. As próprias contestações sociais – que existem com relativa abundância na China são localmente encenadas e geridas pelo próprio partido como forma de reforçar a sua legitimidade. A apertada vigilância digital, o sistema de créditos sociais e a repressão contra as etnias regionais são outros dos seus elementos caracterizadores.

No topo da hierarquia governa Xi Jinping, imponente e seguro. Num país de onde milhões de pessoas saíram da pobreza mais extrema, todos os argumentos críticos ao sistema chocam com estas estatísticas. O país anda galvanizado no seu “sonho” de rejuvenescimento, explode em crescimento, une-se contra os perigos à nação. A doutrina xiista entra pelas universidades, molda as mentes e instala-se na constituição. Os alertas de Li Wenliang e outros inimigos do povo terão pouca – ou nenhuma repercussão na solidez do regime. Ainda assim, ficam lançados alguns desafios que importa analisar.

Em primeiro lugar, naturalmente, as proporções que vier a tomar o 2019 nCov, com resultados ainda em curso. Nesta altura, já superou a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) de 2002 e 2003: o número de infetados ultrapassa os 40.000, e o de mortos mais de um milhar. A falta de condições e o caos que se instalou nas instituições de saúde é uma evidência, que a construção recorde de hospitais tenta remediar. É importante que se diga que nenhum país no mundo teria uma capacidade de resposta nas mesmas condições. A verdade é que muitas pessoas acabaram por não ter assistência, morrendo nos corredores ou regressando a casa para ter uma morte mais digna (de acordo com testemunhos locais). Normalmente, nos sistemas democráticos, falhas de assistência em grande escala têm um elevado custo político. Na China, são amortecidas pelo filtro impenetrável da censura. Por isso, anula-se o efeito de pulverização das redes sociais, fortemente vigiadas por uma polícia de internet especializada. Mas o efeito de descontentamento pode aumentar.

Outro dos grandes desafios, porventura o maior, é a efervescência dos segmentos políticos contrários a Xi Jinping. Crises como o coronavírus são propícias ao desenvolvimento de manobras políticas internas que vão minando as lideranças. Lembro que a implacável luta contra a corrupção, com algumas ambiguidades, tem deixado um rasto de descontentamento em muitos quadros oficiais. Este fenómeno, aliás, é o que esteve na base da crise de Tiananmen (1989), que dividiu os reformistas e os ortodoxos, trespassando o mal-estar para as ruas.

Os indicadores económicos são o outro elemento de risco. A solução da quarentena – a mais sóbria – no combate ao coronavírus tem impactos muito fortes na economia chinesa. Em 2003, a síndrome respiratória aguda grave (SARS) teve um impacto negativo de 2% no PIB, uma parte com reflexo na economia global. O coronavírus promete ser ainda mais severo. Também se verificou, quase imediatamente, uma redução do preço das matérias-primas nos mercados internacionais. O comércio e as escolas vão ficar encerrados durante várias semanas, os indicadores estão a entrar em queda. As cadeias de abastecimento internacionais aguardam fornecimentos do gigante asiático, com graves prejuízos industriais. Muitas empresas estão a pensar em tornar-se menos dependentes deste país no futuro. A estratégia de soft power chinês tem aqui um enorme revés, a imagem do país sai fortemente beliscada. O próprio acordo comercial com os Estados Unidos pode ficar em risco, pelo facto de a China não conseguir algumas das metas acordadas. Ainda sem dados concretos, sabemos que uma retração na economia significa um prejuízo nas condições de vida da população chinesa. As novas gerações estão habituadas a um nível de bem-estar de que não pretendem abdicar em caso de recessão.

Por isso, considero que, ao contrário das manifestações de Hong Kong, a crise do coronavírus é um teste à governação atual, que, sendo bem-sucedida, reforçará o poder do líder; no caso de um falhanço, em vários tabuleiros, pode conduzir a uma crise do sistema. Talvez Li Wenliang apenas se tenha preocupado com a propagação do vírus biológico, mas este é também um vírus político, cuja deflagração é importante combater o quanto antes. Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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