Residência alternada: o papel da lei

Ainda que se trate de um conflito parental, sem qualquer indício de violência doméstica, não é, no mínimo, sensato impor, ou sequer propor como regra, a residência alternada.

Parece que o Dr. Daniel Oliveira, no seu artigo "Comecemos por saber se um filho se tem mesmo de divorciar da mãe ou do pai...”, publicado no Expresso no dia 11 de dezembro, para além de cortar a meio uma frase da entrevista da juíza Clara Sottomayor e de a desligar do seu contexto, ignora os modos de regulação das responsabilidades parentais existentes no sistema jurídico.

A maioria das decisões de guarda de crianças faz-se por acordo dos pais e não é diante de um juiz nem sequer num tribunal. São acordos entregues nas Conservatórias do Registo Civil e que são depois analisados e confirmados pelo Ministério Público, junto do tribunal competente. Só em casos muito raros o Ministério Público chama os pais para os ouvir e questionar a decisão que tomaram. Caso entenda que os pais não acautelaram os interesses dos filhos, tenta levá-los a repensar a sua decisão. Se não for possível obter novo acordo, envia o caso para o tribunal competente e será aberto então um processo judicial de regulação das responsabilidades parentais.

Como se compreende, estes casos são muito raros.

Ora, como é evidente, o Ministério Público não tem tempo nem meios para chamar todas as famílias e para investigar se a solução que estas acordaram é a melhor para as crianças. Por outro lado, é altamente questionável que o Estado tenha legitimidade para tal. O Estado só pode intervir na família quando as crianças estejam em perigo e esse perigo não se pode presumir só porque os pais se estão a divorciar ou a separar, ou porque decidiram que as crianças ficam confiadas à guarda da mãe ou do pai.

Importa ter também presente que os comportamentos dos pais não mudam por decreto, nem o Estado pode impor afetos. O resultado incontornável, e não pode deixar de ser assim, é que o MP confirma sistematicamente estes acordos.

É bem fácil, pois, de ver que os casos de regulação das responsabilidades parentais que se iniciam nos tribunais são os casos provenientes de divórcios litigiosos e de ruturas de uniões de facto em que os pais não chegam a acordo.

A norma do Código Civil que se pretende alterar visa tão-só resolver conflitos de acordo com o interesse das crianças. A resolução de conflitos é a função primordial de todas as regras de Direito. E é neste grupo de casos que surge a violência doméstica, que os tribunais de família tendem a desvalorizar, considerando-a um problema específico dos tribunais penais e não da sua alçada (note-se que nem toda a violência é denunciada ao sistema penal e mesmo nos casos denunciados temos assistido a casos de entrega da guarda de crianças a agressores indiciados ou condenados).

Ainda que se trate de um conflito parental, sem qualquer indício de violência doméstica, não é, no mínimo, sensato impor, ou sequer propor como regra, a residência alternada.

Mesmo que o legislador opte por essa solução com a esperança de promover a igualdade de género, essa alteração não terá, salvo casos excecionais, resultados práticos relevantes, facilitando, pelo contrário, o aumento de casos de aplicação desajustada da residência alternada a crianças muito pequenas, que não se adaptam ao sistema, e a crianças expostas ao conflito ou à violência doméstica.

Defende a juíza Clara Sottomayor uma preferência maternal? Também esta afirmação é uma leitura enviesada do seu trabalho. O que afirma a juíza Sottomayor (na citada entrevista e no seu livro já em 7.ª edição) é que o critério judicial para decidir a guarda, nos casos de conflito, deve ser o critério, neutro em relação ao sexo, que é designado por “pessoa de referência”. Significa este critério que a guarda de crianças deve ser confiada ao progenitor que delas cuidou, predominantemente, no dia-a-dia, durante a constância do casamento ou da união de facto. Caso seja o pai a ter desempenhado esta função, será o pai a obter a guarda. Se no estádio atual da sociedade, tal situação não é a mais frequente, a responsabilidade não é da lei e, muito menos, deste critério judicial, mas dos padrões de repartição de tarefas que os pais praticam na constância do casamento.

Há mais de 40 anos que temos na lei o princípio da igualdade de género e continuamos a observar que a divisão de tarefas dentro da família segue moldes estereotipados em função do género. É uma realidade que tem vindo a mudar (felizmente), mas lentamente. A lei não produziu efeitos nos comportamentos. Este problema é realmente um dos mais difíceis de resolver, porque é regulado pelo costume e não pela lei.

O problema não é as decisões de guarda depois do divórcio. O problema é as práticas no interior da família durante o casamento. A capacidade de intervenção do Estado nesta matéria tem de ser repensada, mas é necessariamente limitada.

Ora, na nossa opinião, a solução para o problema supra mencionado não passa (nem pode passar) por obrigar as crianças, em massa, depois do divórcio ou separação dos pais, a viver em residência alternada, revogando (ou ignorando) os acordos dos pais, nem passa por sujeitar as crianças, nos casos litigiosos, a uma maior exposição ao conflito. É que, nesta matéria, como bem diz (e bem) a juíza conselheira Clara Sottomayor, tem de prevalecer o interesse da criança, e, perante estudos empíricos de resultados díspares, não há fundamento científico para instaurar uma política pública de residência alternada.

É verdade que os tribunais atribuem a guarda de crianças sistematicamente à mãe? Também aqui há um grande equívoco.

Para responder a esta questão seria necessário isolar os casos de litígio dos casos em que os pais apresentam um acordo. Só existe uma decisão judicial nos primeiros e estes representam uma percentagem muito baixa da totalidade de crianças cujos pais se divorciaram ou separaram. E, analisados separadamente os casos litigiosos, o que se verifica é que os tribunais de família (conforme estudos feitos em França e nos EUA), mediante uma avaliação casuística, aplicam a residência alternada ou confiam a guarda da criança à mãe ou ao pai, sem qualquer preconceito de género contra os pais-homens. Pelo contrário, o que está neste momento a suceder é uma discriminação das mães, vítimas do anti-feminismo e do conceito sem validade científica de “alienação parental”.

As formas de discriminação e de violência de género contra as mulheres mudam com o tempo. E o feminismo não pode ficar parado a defender conceções de décadas anteriores, centradas no combate a estereótipos, que já não resolvem as novas formas de discriminação que as mulheres estão a viver.

O feminismo é evolutivo e tem de estar, aqui e agora, onde estão as mulheres e as crianças a sofrer as novas formas de patriarcado: nos processos litigiosos de regulação das responsabilidades parentais.

As autoras escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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