Expliquem-me, por favor, mas bem devagarinho!

O que não compreendo é quais as adaptações ou especificidades implicadas no facto de ter trabalhadores LGBTQ+ numa organização.

Apeteceu-me começar este texto pedindo que me expliquem tudo, bem devagarinho, porque há demasiadas coisas, nestes estranhos tempos, que eu não consigo perceber.

E claro que há o tempo líquido, as gerações líquidas, a efemeridade, a mudança acelerada...

E claro que há também o facto de eu ter já dobrado o cabo dos cinquenta e, afinal, justamente pela aceleração da mudança, estes cinquenta anos parecerem equivaler a qualquer coisa como duzentos…

Mas mesmo reconhecendo a relevância dos dois pressupostos acima, continuam a existir factos sociais que estão totalmente para além da minha (possivelmente escassa) capacidade de compreensão. Li há dias, numa revista semanal de infomação, que existe uma secção LGBTQ+ na Google, secção essa dirigida por um português.

Pareceu-me, da leitura da entrevista, que essa secção, que eu inicialmente presumi ser orientada para a produção de conteúdos de interesse específico para a comunidade LGBTQ+, é, na verdade, uma secção ou departamento de natureza interna, com finalidades inclusivas, isto é, protector da diferença dentro da organização ou, nas palavras do próprio responsável, uma secção destinada a “assegurar que cada funcionário que se identifica como LGBTQ+ saiba e sinta que na Google, quem ele/ela ama não interfere na sua carreira”.

Não me considerando eu uma pessoa de preconceitos – ou talvez, numa formulação mais correcta e para não resvalar para a tendencial hipocrisia dos discursos dominantes – não me considerando eu uma pessoa de preconceitos, na justa medida em que é possível uma pessoa não ter preconceitos, a minha estranheza vem do facto de numa empresa multinacional da dimensão e da importância da Google ser necessário “proteger” os trabalhadores (lamento, mas não aprecio a moderna expressão colaboradores) face a algo que é, exclusivamente, do domínio da vida privada e íntima desses trabalhadores.

Ou, o mesmo será dizer, não consigo perceber o que tem a organização (qualquer organização) a ver com a orientação, as escolhas ou as vivências privadas da afectividade e da sexualidade de quem nela, e para ela, trabalha.

Aliás, eu trabalho há muitos anos numa organização e acredito – e quero continuar a acreditar – que esta organização não se interessa minimamente por quem “eu amo” ou deixo de amar.

E sabe, esta organização em que eu trabalho, que sou casada pelo facto de haver um IRS a descontar do meu salário. E sabem alguns amigos, dentro dessa organização em que eu trabalho, quem é o meu marido (mas sabem-no porque são meus amigos e, como tal, eu lhes concedi acesso a esse conhecimento, e não porque são A organização).

A organização, repito, nada tem a ver com a minha vida íntima e privada e não serei eu a fornecer-lhe qualquer informação a respeito da mesma. Porque é disso que se trata: de privacidade, de vida privada, de tempo privado, relativamente aos quais nenhuma organização empregadora deveria poder exercer qualquer controlo ou ingerência (nem em nome de uma suposta protecção).

E protecção contra quê? Contra o bullying organizacional? Nesse caso, a forma mais adequada seria evitar e condenar esse bullying, sejam quais forem os pretextos que o desencadeiam (orientação sexual, identidade de género, altura, peso, miopia, estrabismo...).

Compreendo que uma organização que empregue cidadãos portadores de determinados tipos de deficiência tenha de fazer, internamente, as correspondentes adaptações e que tenha de desenvolver respostas inclusivas e de apoio às necessidades específicas destes trabalhadores (conheço até exemplos de boas-práticas neste domínio em Portugal). O que não compreendo é quais as adaptações ou especificidades implicadas no facto de ter trabalhadores LGBTQ+ numa organização.

Parece-me, aliás, que nesta febril vontade de incluir e proteger, se está a criar diferença. Uma diferença que não deveria existir, simplesmente porque não tem razão para existir.

E parece-me também que, nesta vontade de incluir, os limites se estão a tornar perigosamente ténues, quer na legitimação e consagração da ingerência da organização empregadora, naquilo que é a vida íntima dos seus trabalhadores, desvalorizando, ainda mais, o já de si tão debilitado conceito de privacidade; quer na formação de verdadeiros guetos auto-impostos, onde nos fechamos aos outros, protegendo, sim, a nossa “diferença”, mas privando-nos de conhecer a “diferença” do outro.

Será, em última instância, a definitiva consagração do mais absoluto maniqueísmo: “são bons os que são como eu, são maus todos os outros”. E depois dizem-me que isto é inclusão... Talvez seja melhor explicarem-me tudo de novo, mas bem devagarinho, por favor!

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