Um sofisma em saúde

É imperioso saber que impacto tem a gestão empresarial dos hospitais na saúde dos seus doentes, além dos números que produz. É que a saúde não se mede aos palmos.

O setor da saúde é um bom exemplo de que as métricas e estimativas de saúde podem expressar uma realidade diferente das verdadeiras medições e parâmetros quantificadores do bem saúde. E este constitui um dos sofismas em saúde.

Existem duas formas de se aumentar quantitativamente o bem saúde. A primeira configura um racionamento por igualdade em que se proporciona uma igual quantidade dos recursos em saúde a todos os indivíduos de uma população, independentemente do grau de doença dos mesmos. A segunda forma relaciona-se com um racionamento equitativo, com uma distribuição desigual dos recursos disponíveis de acordo com o estado de doença dos indivíduos. Em ambas as situações, a saúde que é acrescentada à população é exatamente a mesma, em termos agregados, de acordo com os recursos disponíveis e assumindo que todos eles foram utilizados.

Por intuição, percebemos que o raciocínio anteriormente exposto não passa de um paralogismo, porque é erróneo. Basta dizer que no primeiro modelo, a distribuição igual das unidades de saúde por indivíduos com estados de saúde diferentes prejudicou aqueles com grau inferior de saúde, comparativamente com os indivíduos menos doentes que ficaram ainda mais saudáveis. Contudo, a produção quantitativa global do bem saúde é exatamente a mesma para níveis iguais de disponibilidade e utilização de recursos.

Pois bem, esta última conclusão integra a retórica de que “este ano, o número de consultas e de cirurgias aumentou e, por isso, é bom”. Este tipo de discurso não tem a virtude de ter necessidade lógica, não sendo necessariamente verdadeiro. Nesta análise, a dimensão qualidade é totalmente descurada.

Ora, a empresarialização dos hospitais públicos, com introdução de lógicas de gestão empresarial e assimilação de conceitos gestionários muito próprios do setor privado, entranha-se nos valores e missão dos hospitais. Quer se queira, quer não. Isto introduz uma dismorfia axiológica dos hospitais, a começar pelo privilégio da busca por orçamentação hospitalar, num esforço centrífugo ao interesse do doente. É um potencial risco moral. E se é um risco moral, coloca em causa a eticidade da aplicação deste modelo hospitalar. Compreende-se, por tudo o que até aqui foi dito, que um médico deve aumentar o número de consultas de forma mais eficiente possível. Com “mais eficiente possível” pretendo significar “aumentar o número de consultas num mesmo espaço de tempo”. Por derivação formal de raciocínio, cada uma das consultas passa a realizar-se em menos tempo, com quebra matemática da relação médico-doente e da qualidade da própria consulta. Depreende-se daqui que a saúde se deteriora. Isto é, para mim, insofismável. Um maior número de consultas implica que mais doentes recebem unidades de saúde. O problema está em perceber se os doentes mais graves recebem as unidades de saúde suficientes ou não. Simplesmente, porque menos tempo lhes é dedicado.

Ademais, os hospitais-empresa incorrem no risco moral de realizar as cirurgias mais rentáveis, mesmo que estas atribuam saúde aqueles que menos precisam, em detrimento de cirurgias menos rentáveis, mesmo que as últimas se associem a situações mais graves. Estaremos a discriminar os doentes mais graves?

Portanto, a pergunta que se impõe é: mesmo com o aumento das consultas e cirurgias, com o aumento geral da produtividade em termos de outputs, a saúde está a aumentar no âmbito hospitalar? Estamos a criar uma população mais saudável com o modelo gestionário escorado nos hospitais-empresa?

É sabido que medidas de saúde pública e de prevenção são determinantes de alguns indicadores de saúde, como a taxa de mortalidade evitável, por exemplo. Contudo, será verosímil concluir que melhores outcomes populacionais, como a taxa de mortalidade evitável, atribuídos a medidas de prevenção e de saúde públicas, possam ser também atribuídos aos modelos de gestão hospitalar vigentes? Podemos concluir, por contiguidade de significado entre os termos “medidas hospitalares” e “medidas de saúde pública”, que ambos são fatores determinantes desses outcomes?

É portanto imperioso saber que impacto tem a gestão empresarial dos hospitais na saúde dos seus doentes, além dos números que produz. É que a saúde não se mede aos palmos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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