Requiem pelos mortos, provas de vida

No concurso internacional do Doclisboa, a morte paira sobre Tinnitus e Under-ground, objectos mais interessantes no papel do que no ecrã

"Tinnitus" de Daniil Zinchenko
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"Tinnitus" de Daniil Zinchenko dr
"Under-ground", do coreano Wook Steven Heo
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"Under-ground", do coreano Wook Steven Heo

A Morte neste Jardim é o título de um romance de José-André Lacour que Luis Buñuel levou ao cinema nos anos 1950 (o filme chamou-se por cá Labirinto Infernal) – e não conseguimos afastar esse título da cabeça quando alguém diz, no filme de Daniil Zinchenko Tinnitus, que os jardins de Fryazino foram palco de vários concertos e performances de artistas entretanto mortos. É a morte que junta Tinnitus (cinema Ideal, segunda 21 às 22h00, e Culturgest, quarta 23 às 14h00) a Under-ground, do coreano Wook Steven Heo (repete no Cinema São Jorge, quarta 23 às 14h00), na competição internacional do Doclisboa: são dois requiem pelos mortos, em circunstâncias e locais profundamente diferentes, e duas provas de vida, memórias das “pequenas histórias” que a Grande História não registou. São obras que valem pelo que contam e mostram, mais do que pelas suas opções cinematográficas, e estão longe de ser grandes filmes.

Particularmente decepcionante a esse nível é Under-ground, que usa o subterrâneo como metáfora do esquecimento do sofrimento dos coreanos às mãos do Japão durante o período em que o país (ainda não dividido entre norte e sul) foi, entre 1910 e 1945, uma colónia nipónica. Que o mesmo é dizer fonte de mão-de-obra literalmente escravizada, trabalho forçado na construção das instalações e estruturas que serviriam de base ao impulso tecnológico japonês durante a primeira metade do século XX. Minas, estaleiros, metalúrgicas, tudo foi erigido e sustentado em parte por coreanos vistos como cidadãos de segunda ou terceira classe, aos quais não eram reconhecidos mais direitos que não o de serem cidadãos do império do sol.

Wook filma os locais onde os coreanos foram usados como trabalho forçado e mal-tratado, regista a propaganda corporativa japonesa e as visitas a memoriais onde a presença coreana é reconhecida, mas de forma discreta, quase apagada. Mas Under-ground tem um problema que nunca resolve. Ao mesmo tempo que critica a banalidade das visitas turísticas a locais históricos trazendo ao de cima aquilo que não é dito nessas visitas – recordar os outros mortos que ali se deveriam também comemorar — torna-se ele próprio numa visita turística. Wook afoga o espectador numa litania informativa que cria exactamente o mesmo efeito entorpecedor, incapaz de (por exemplo) deixar as imagens falarem por si como Sergei Loznitsa tão bem faz.

Entorpecedor é coisa que Daniil Zinchenko não é em Tinnitus: do que aqui se fala é da (ruidosa) cena musical underground industrial de Fryazino, cidade-satélite de Moscovo, e de Dimitri Vasiliev, um dos seus impulsionadores. Ou antes, é esse o pretexto para uma exploração (algo superficial) da dimensão negra, depressiva, da alma russa, fazendo a ligação entre o ruído niilista desta cena com o “necrorealismo” do círculo literário Yuzhinsky. O título do filme vem do célebre zumbido permanente nos ouvidos que em português tem a designação de acufeno, e que o artista underground americano John Duncan define no filme como “um concerto privado que está sempre presente e que podemos ignorar ou sintonizar”.

De certo modo, é esse o problema de Tinnitus: o que começa como um filme sobre a música como revolta e a morte como fascínio torna-se lentamente num requiem por amigos desaparecidos, consubstanciado na performance de Duncan no meio dos bosques ao redor de Fryazino, com a câmara de Zinchenko e um drone em movimento constante como únicas presenças, que ocupa todo o último terço do documentário. Nunca se questiona a sinceridade mas fica a sensação de um filme sôfrego, que ao querer ser tudo acaba por ser menos do que pode.

 
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