Vadio é “quem vai de casa em casa e canta”. E então acontece o fado

Premiado no DocLisboa em 2018, Vadio chega esta quinta-feira às salas. Um documentário singular sobre o fado amador, aqui explicado pelo realizador, Stefan Lechner, e pelo protagonista, David Gonçalves.

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David Gonçalves pelas vielas de Lisboa, em Vadio DR

Recebeu o prémio do público (com patrocínio deste jornal) no DocLisboa de 2018 para Melhor Filme Português e agora chega às salas. Vadio – I’m Not a Poet, documentário assinado por Stefan Lechner, realizador, produtor e músico austríaco radicado em Lisboa há 12 anos, percorre o universo do fado amador (ou vadio), centrando-se na história e na persistência de um jovem fadista: David Gonçalves.

Nas suas primeiras incursões por Lisboa, Stefan ficou seduzido por esse universo, como recorda ao PÚBLICO. “Eu já vi fado antes, em concertos. Mas foi na tasca que me senti em casa. Canta uma pessoa, canta outra, estão no meio do público, então é nesses momentos que acontece fado.” Há ainda a força dos sentimentos: “É esse deixar algo sair, que existe muito no fado vadio. Se acontece alguma coisa triste, como no filme também aconteceu, após as filmagens [morreram participantes, e há um in memoriam no final da ficha técnica, recordando-os], o fado ajuda muito a fazer uma catarse disso.”

Mas a ideia do filme sobre o fado amador surgiu-lhe depois, em 2012. Estava à porta de uma tasca, a ouvir fado, e pensou: “Este é o mundo onde quero fazer um filme.” Ainda não sabia bem português, e precisou de algum tempo para concretizar o projecto. “Comecei com a minha câmara, sozinho, a ir para várias tascas gravar imagem e som. Para fazer um inventário das tascas. Porque sou estrangeiro, não sou fadista, mas queria que as pessoas ficassem muito à-vontade comigo.” Para isso, pôs-se até a aprender coisas sobre o fado e os seus meandros. E começou a aprender viola de fado, numa escola então aberta no Grupo Desportivo da Mouraria. E foi aí que conheceu David Gonçalves.

“David representa o fado”

Nascido em 1986, em Lisboa, David Gonçalves não teve uma infância fácil, como ele explica no filme. E quem assistir a Vadio entenderá os contornos da sua história. Mas o fado chegou-lhe cedo. “A minha primeira experiência [com o fado] foi com 6 anos, nada de que me possa vangloriar. Uma vez o meu pai levou-me a uma colectividade que havia no Alto de São João, eu cantei e agradei de tal forma que quando acabei aquela gente toda veio direito a mim, levantaram-me, levaram-me ao colo e eu assustei-me. Era uma criança de 6 anos!” Passados 20 anos, o proprietário de um estabelecimento do seu bairro contactou-o. “Foi o senhor Carlos Santos, do Solar dos Santos, que durante muitos anos foi um baluarte do fado em Lisboa. Disse-me: ‘Passa lá, que eu tenho uma escola de fado, tu tiras uns tons.’ ‘Acha que vale a pena?’ ‘Passa lá’. E eu passei, comecei a tirar uns tons, gostaram muito da minha voz na altura. Entrei no 31 de Julho, data que escolhi para assinalar o meu aniversário de fado.” E dali saiu para o Desportivo da Mouraria, onde conheceu Stefan.

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Um momento de fado amador, no filme Vadio DR

Mas foi um fadista de nome Américo (“que faz o favor de ser meu padrinho”) que o levou para os concursos e para as casas mais típicas de Alfama. “A partir daí, comecei a frequentar esse circuito. E tornei-me um vadio: todo o sítio onde houvesse fado, lá estava. Porque o termo fado vadio está relacionado com o fado amador. Vadio é quem vai de casa em casa e canta. Já a colectividade nunca deixou de ser casa do fadista, qualquer fadista que se preze tem de passar pelas colectividades.”

E foram as colectividades outro pólo de atracção para Stefan, quando começou a preparar o filme: “Havia várias pessoas que eu achei interessantes e comecei a documentá-las. O David era um deles, fui com ele a muitas colectividades e conheci uma outra Lisboa por causa disso.” E acabou por ser ele mesmo o fio condutor do filme: “Achei-o tão persistente, que durante cinco anos segui os caminhos do David, os altos e os baixos. E comecei a perceber que o David, para mim, representa tudo o que é fado. É muito difícil explicar o que é o fado, em palavras. Mas o David personifica muitas coisas que o fado é, como o destino. Os outros estão no filme, mas a história é a dele. Fiquei muito feliz quando, no DocLisboa, vários fadistas me disseram que eu tinha mostrado aquele mundo de dentro para fora.”

Fazer da raiva poesia

O subtítulo do filme, em inglês, I’m not a poet, é explicado assim por David: “Quando eu apareci, já escrevia. Tive um passado um bocado atribulado e era extremamente violento na forma de falar, de agir. Até que um dia um amigo meu me disse que devia transformar essa raiva em poesia. E quando dei por mim, comecei a rimar. Sempre tive uma paixão grande pelo fado, até ao dia que voltei a ouvir um senhor que para mim foi o grande nome do fado, Fernando Maurício, cantar um fado que me marcou profundamente: Boa noite, solidão. Tocou-me de tal forma na alma, que senti que aquilo que tinha começado com seis anos era um chamamento.” E foi escrevendo, embora preferisse ser conhecido como fadista. “Queria demonstrar às pessoas que não era só isso, que também tinha valor a cantar.”

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David Gonçalves a cantar, em Vadio DR

E é essa a luta de David Gonçalves, que o filme retrata de forma singular, retratando em simultâneo o seu mundo. Vadio estreia-se esta quinta-feira nas salas City em Lisboa (Alvalade, 13h e 19h), Setúbal e Leiria (19h), bem como nas salas Lusomundo de Almada, Gondomar, Coimbra e Viseu. Isto além de sessões únicas, em Novembro, no Funchal (dia 8), em Tomar (12), Odivelas (15) e Angra do Heroísmo (24). Vadio vai também ser exibido no final do mês, no dia 31, no Festival In-Edit em Barcelona.

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