Ex-ministro e altas patentes acusados no caso de Tancos

Ministério Público deduziu acusação contra 23 dos arguidos no processo que juntou a investigação do assalto a Tancos e o plano à margem da lei para recuperar o material. Além do ex-ministro José Azeredo Lopes, que saberia do plano, no rol de acusados estão dois tenentes-coronéis constituídos arguidos na recta final da investigação que começou por visar um coronel e dois majores da Polícia Judiciária Militar.

Foto
Miguel Manso

O Ministério Público (MP) decidiu acusar o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes e outros 22 arguidos no caso de Tancos, incluindo várias altas patentes do Exército e da GNR. No caso do antigo governante está em causa o crime de denegação de justiça e prevaricação, bem como o de favorecimento pessoal, como consta do despacho de acusação, com data de 25 de Setembro, a que o PÚBLICO teve acesso. 

Entre os acusados destacam-se os responsáveis da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Vieira, o major Vasco Brazão e o major Pinto da Costa. Mas também altas patentes da GNR, que foram constituídos arguidos nas últimas semanas da investigação criminal liderada pelos procuradores Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente: os responsáveis pela investigação criminal da GNR, coronel Amândio Marques e coronel Taciano Correia. O tenente-coronel Luís Sequeira, chefe da Secção de Informações e Investigação Criminal do Comando Territorial de Faro foi constituído arguido em Abril. Todos são acusados (individualmente ou em co-autoria) por crimes de associação criminosa e de tráfico e mediação de armas. 

Dúvidas sobre general

Relativamente ao ex-chefe da Casa Militar do Presidente da República, tenente-general João Cordeiro, os procuradores, que não o acusam, consideram no entanto que “a prova existente” permite “suspeitar que João Cordeiro pudesse estar a acompanhar, de alguma forma, as diligências paralelas” da PJM “à margem do Ministério Público e da PJ e que tivesse conhecimento do acordo que foi efectuado com o autor da subtracção”. 

Os magistrados referem-se aos contactos próximos mantidos com Luís Vieira, ao teor das intercepções telefónicas, às declarações de Vasco Brazão que diz em interrogatório que o general estava informado do plano, a confirmação da existência de emails enviados, e ainda “à postura processual, ao faltar com a verdade no seu depoimento”. Por isso, e porque dizem resultar do depoimento de João Cordeiro indícios da prática, pelo mesmo, de um crime de falsidade de testemunho, o MP extraiu certidão para uma investigação ao general por essa suspeita. Por se tratar de um general, a investigação decorre no MP de um tribunal superior. 

Nas respostas às perguntas por escrito dos procuradores, o tenente-general negou ter recebido emails do director da Polícia Judiciária Militar, coronel Luís Vieira. Disse apenas que Luís Vieira o foi mantendo informado, “sem nunca entrar em detalhes, através de algumas conversas telefónicas [das quais não consegue especificar as datas] e uma vez presencialmente, no início de Agosto de 2017, da situação da investigação e de algumas suspeitas que tinham”. 

E acrescentou: “Nunca por nunca, no entanto, me foi transmitido, mencionado ou dado a transparecer a existência de diligências no sentido de se vir a efectuar um ‘acordo’ para a devolução do armamento.”

Saber ou não saber 

Já o tenente-coronel Luís Sequeira, superior hierárquico do sargento Lima Santos, comandante do Núcleo de Investigação Criminal (NIC) de Loulé, disse aos deputados na comissão parlamentar de inquérito, um mês antes de ser constituído arguido, que autorizara a colaboração dos seus subordinados com a PJM, mas garantiu não ter conhecimento de que a investigação estava a cargo da PJ. 

Lima Santos terá comunicado aos seus superiores a possibilidade de avançar com o plano desde que fossem garantidas as autorizações e guias de saída para os elementos da GNR que juntamente com PJM participariam no plano de recuperação do armamento, sem ser dado conhecimento ao órgão de polícia criminal a quem competia liderar a investigação – a Polícia Judiciária.​

Segundo o Ministério Público (MP), Luís Sequeira terá igualmente sido contactado pelo coronel Luís Vieira, então director-geral da PJM, dizendo-lhe que pretendia contar com a sua autorização sem a qual os elementos da GNR não poderiam participar no plano. Terá sido então que Luís Sequeira teve de dar conhecimentos ao director e ex-director da investigação criminal da GNR, que aceitaram e autorizaram.

A GNR participava no plano, pois foi a um dos seus militares, ao guarda Bruno Ataíde do núcleo de investigação criminal de Loulé, que João Paulino, preso preventivamente por suspeita de ser o principal autor material do furto, terá informado que queria entregar parte do material – que dificilmente venderia tendo em conta a atenção mediática dada ao caso.

João Paulino faria a entrega em troca da garantia de que a sua identidade não seria revelada e que não seria perseguido criminalmente. Na tese do MP, Paulino não só terá pedido garantias de não ser perseguido mas igualmente a imunidade dos restantes assaltantes – que serão sete.

Ex-director preso cinco meses

No acórdão de Fevereiro passado em que ordena a libertação do ex-director da Polícia Judiciária Militar, o arguido e coronel Luís Vieira, o Tribunal da Relação de Lisboa levanta o véu sobre alguns aspectos deste caso. “Os indícios existentes põem em causa toda a segurança de uma nação e colocam em risco outros Estados e outras nações”, escrevem os desembargadores Adelina Barradas de Oliveira e Jorge Raposo, que colocaram o coronel em liberdade. Não ficaram convencidos, ao contrário do que defende o Ministério Público, que ele seguia a par e passo as investigações dos seus inferiores hierárquicos e que compactuou com a encenação do “achamento” do material militar.

“O facilitar e encobrir de indivíduos que traficam armas ou apenas se apoderam delas, ainda que se consiga de uma forma obscura reaver o que tinha sido retirado, indicia uma forma de estar negligente e por isso geradora de situações de risco, no exercício de uma função de defesa de Estado”, critica o Tribunal da Relação de Lisboa no mesmo acórdão. Os juízes falam da “guerra institucional” que se gerou entre a Judiciária civil e a sua congénere militar após o roubo de Tancos, e que fez com que os militares tivessem passado a agir nesta investigação por sua conta e risco, nas costas dos seus colegas civis e recorrendo à colaboração da GNR. Luís Vieira esteve preso durante cinco meses no Estabelecimento prisional militar de Tomar. 

Em torno de João Paulino, o ex-fuzileiro considerado o cérebro do assalto a Tancos, gravitavam várias outras figuras. Uns estiveram com João Paulino nos paióis na noite de 27 para 28 de Junho de 2017, enquanto outros forneceram apoio logístico aos cúmplices mas não estiveram no terreno nessa madrugada.

As informações sobre a localização do material e a melhor forma de chegar a ele foram-lhes dadas por um furriel contratado que prestava serviço em Tancos e que entretanto saiu do Exército. Preparava-se para entrar na GNR quando foi detido, tendo-lhes sido prometidos 30 mil euros pelas informações. A ligação do ex-furriel a João Paulino surgiu através de um tio do primeiro residente na zona de Aveiro.

Para abrir as portas do recinto militar João Paulino tentou obter a preciosa colaboração de Paulo Lemos, mais conhecido por Fechaduras”. Queria que lhe arranjasse material para franquear os depósitos de armamento militar, e prometeu-lhe 50 mil euros em troca. Mas farto de uma vida ligada ao crime, “Fechaduras” alertou antecipadamente as autoridades para a possibilidade de vir a ser furtado material militar num quartel português na zona de Leiria. Contou a uma magistrada do Porto ter sido contactado por alguém para participar num assalto deste tipo e acabou por declinar o convite de João Paulino, o que acabou por lhe valer não estar entre os acusados deste processo - muito embora inicialmente tenha arranjado informações úteis para o assalto. Depois dos alertas de Fechaduras a Judiciária bem tentou colocar alguns dos assaltantes sob escuta para evitar que o assalto se consumasse, mas foi impedida de o fazer pelo juiz de instrução criminal Ivo Rosa. 

Do rol de civis acusados fazem parte dois outros homens com antecedentes criminais: António Laranginha e outro indivíduo conhecido por Caveirinha. Ligados ao tráfico de armas, ambos terão ido a Tancos ajudar a carregar o material. Laranginha é ainda suspeito de ter estado envolvido no caso do desaparecimento das pistolas Glock da sede nacional da PSP: seria a ele que o polícia que roubou as armas as ia entregando à medida que as desviava, para que este lhes encontrasse compradores.

Numa nota informativa emitida esta quinta-feira à hora de almoço, a Procuradoria-Geral da República explica que nove dos 23 arguidos foram acusados, além do crime de associação criminosa, de terrorismo (com referência ao furto do material militar), de tráfico e mediação de armas e ainda de tráfico de estupefacientes. Oito destes nove homens “cortaram a rede, introduziram-se no perímetro da instalação militar, destruíram fechaduras de paióis e retiraram do seu interior várias caixas com material militar que ali se encontravam armazenadas”, tudo no valor estimados de 35 mil euros. Este material, algum do qual de alta perigosidade, foi depois transportado para o terreno de uma familiar de João Paulino, onde ficou guardado.

Acusações desmentidas

Ao longo da investigação, e antes de deduzida a acusação, os advogados de defesa tiveram apenas acesso aos primeiros interrogatórios dos arguidos e os despachos de indiciação, optando por não se pronunciarem.

Porém, este ponto sobre a alegada garantia de que os autores do roubo não seriam perseguidos depois de o material ser restituído foi desde o início desmentido pelos arguidos da PJM, como o major Vasco Brazão, ex-porta-voz da PJM. O objectivo, defende-se, seria recuperar o material e a investigação no âmbito da qual tentariam encontrar os autores do assalto na noite de 27 para 28 de Junho de 2017. 

Foi na noite desse dia 28 de Junho, como consta no processo, que o coronel Luís Vieira, ex-director-geral da Polícia Judiciária Militar, soube do desaparecimento do material de guerra roubado dos Paióis Nacionais de Tancos. Assim que recebeu a notícia, ter-se-á dirigido a casa do então ministro José Azeredo Lopes.

Seria o primeiro de uma série de contactos e encontros entre o governante e o responsável da PJM, que nunca aceitou a decisão da então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, de atribuir a responsabilidade da investigação à Polícia Judiciária civil no início de Julho. Antes disso, já uma equipa de investigadores militares tinha sido constituída e iniciara os interrogatórios nas próprias instalações de Tancos.

Formalmente, por decisão judicial, a PJM ficaria apenas a colaborar com a Unidade Nacional Contra Terrorismo da PJ e seria esta a coadjuvar o MP que agora deduz a acusação. Oito dos 23 acusados encontram-se em prisão preventiva, uns na cadeia e outros em prisão domiciliária. Onze dos arguidos (militares na sua maioria) foram suspensos de funções. O Ministério Público pediu a aplicação a todos os arguidos da PJM, da GNR e ainda a Azeredo Lopes a pena acessória de proibição do exercício de funções.

Sugerir correcção
Ler 42 comentários