Cinema: 2019

A essência do cinema: uma arte feita para vermos todos juntos.

Na sala estariam umas 30 ou 40 pessoas, todas adultas à excepção de um grupo de amigas com 14 ou 15 anos. Qual será a relação delas com O Rei Leão? Para os restantes espectadores parecia mais ou menos óbvio: todos tinham visto o filme original na sua adolescência ou meninice e vinham comprovar se esta nova versão acrescentava alguma coisa.

Podia dar-se ainda o caso de alguém não ter visto o filme de 1994 no cinema e querer agora experimentar a sensação de ver aquelas cenas num ecrã de grandes dimensões, ligeiramente curvo, numa sala às escuras livre de distracções, na companhia de outras pessoas. A essência do cinema: uma arte feita para vermos todos juntos.

As apresentações foram de filmes de bonecos. Parece que vem por aí um novo Frozen, um novo Angry Birds, aproveitando a popularidade dos primeiros. O Rei Leão também é um filme de bonecos, mas já não aqueles que sabíamos identificar imediatamente como tal, antes uns desenhos hiper-realistas que se querem aproximar da estética BBC Vida Selvagem e que não evitam um certo absurdo quando a boca dos leões se mexe para falar.

Apagam-se de vez as luzes, a sala mergulha no breu e no silêncio. Rebenta então o canto tribal e nasce o sol na savana africana. A reacção daquelas amigas é curiosa. Pegam no telemóvel e gravam em vídeo os primeiros planos, desde que começa a canção Ciclo sem fim até ao momento em que a cena termina com a aparição dos créditos iniciais.

Qual será a relação delas com O Rei Leão? Terão visto o filme original? Se o fizeram, o que terão achado? O que terão achado, numa época em que a maioria dos filmes de animação são computorizados, de um filme ainda desenhado à mão? Pareceu-lhes uma bizarria, uma coisa naïf? Terão captado n’O Rei Leão uma mensagem semelhante à dos espectadores dos anos 1990? Ou nem sequer viram o filme original e vêm ver este porque lhes disseram que era um filme marcante da Disney? Será que vieram só pelo aparato técnico e não tanto pela história?

Só uma certeza: o cinema é para elas uma experiência colectiva muito diferente do que foi durante cem anos. Não é só estar numa sala com outras pessoas a partilhar com estas um caminho desconhecido que para cada um trará diferentes saídas. É um colectivo que transcende o espaço físico da sala. Aqueles vídeos vão parar ao Instagram, o relato do filme é feito em directo no WhatsApp.

A que dose de irrealidade nos permitimos? Neste cinema passa um vídeo em que uma voz vai dizendo que vimos ver filmes para nos afastarmos da realidade, para não pensarmos nos problemas e no transporte para casa, para suspendermos o mundo durante um par de horas.

Conseguimos alcançar a irrealidade se trazemos a nossa realidade (via telemóvel) para dentro da sala? Ou o cinema (já) não é sítio onde se vá procurar irrealidade? Pode também ser que esta relação com as redes sociais, aqui tomada como extensão do mundo dentro da sala, seja o contrário e que o filme projectado e a vida lá fora sejam a mesma amálgama, simultaneamente real e irreal.

O Rei Leão prossegue, quase igualzinho ao primeiro, plano a plano, mas sem algumas ficções da animação original, apostado em fazer-nos crer na verosimilhança daquilo tudo. É tudo muito possível, de facto, sejam os bonecos mais ou menos realistas: usam-se os leões para pôr na tela as virtudes, anseios, desejos, defeitos e frustrações dos humanos. A inocência, a morte, a injustiça, a fuga: tudo está aqui presente, como no Hamlet e em milhares de histórias posteriores, como no dia-a-dia. Muda apenas o artifício. Se antes parecia mais interessante que a história fosse contada por leões obviamente desenhados, agora estica-se a fantasia até às portas do real — e entre uma e outra coisa fica a sensação estranha de não se saber já porque viemos, afinal, ver este filme.

Há uma coisa n’O Rei Leão que não é verosímil, que nos arrasta para a irrealidade prometida. É que tudo termina em bem, com uma vingança bem-sucedida e redenção, coisa que é raríssimo acontecer cá fora.

Afinal, o cinema ainda nos dá o que a vida tira.

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