António Preto: “Manoel de Oliveira foi um modernista ao longo de todo o seu percurso”

O director da Casa do Cinema Manoel de Oliveira justifica a escolha do tema “a casa” para a primeira exposição temporária do novo equipamento sediado em Serralves.

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António Preto foi escolhido pelo próprio Manoel de Oliveira para dirigir a sua Casa do Cinema Nelson Garrido

A exposição inaugural, e primeira exposição temporária, é A Casa no Cinema de Manoel de Oliveira. Porquê?

Este é um tema que se impunha quase como uma evidência. Um percurso pelo filme Visita ou Memórias e Confissões permite reflectir sobre as muitas e diferentes casas que povoam o cinema de Manoel de Oliveira, quer como entidades dramáticas, quer como espaços concretos e definidos, quer ainda, nalguns casos, como personagens. Manoel de Oliveira dizia muitas vezes que, apesar de evitar o psicologismo no modo como os actores interpretavam os textos que ele levou ao cinema – e como dizia o Júlio/Saúl Dias, irmão do Régio –, “as paredes têm psicologia”. As casas também têm essa dimensão muito forte na sua obra. Neste momento inaugural, fazia sentido partir daquele que Manoel de Oliveira escolheu para ser o seu último filme, realizado num momento em que se vê forçado a abandonar a sua casa da Rua da Vilarinha. É um filme póstumo e pode ler-se nele uma dimensão testamentária, mas é também um filme profético, já que, devido à sua extraordinária longevidade, ele antecipa aí toda uma série de filmes que estavam ainda por realizar, a começar logo pelo Non, ou a Vã Glória de Mandar. São dois filmes próximos, ambos reflectem sobre questões que têm a ver com o tempo, com a História, e as contingências políticas desse tempo e dessa história.

O que é que vale hoje, passados quatro anos sobre a sua morte, a obra de Manoel de Oliveira?

Manoel de Oliveira foi um modernista ao longo de todo o seu percurso, em sentido próprio, nos anos 30 e em parte dos anos 40 e, em sentido figurado, alguém que sempre se projectou no futuro, a partir daí. Esteve sempre muito preocupado com questões que são universais e intemporais. Mas a sua obra sempre teve também a vocação de olhar para essas questões de uma forma muito enraizada no tempo histórico concreto da produção das suas obras. Isso é muito evidente nomeadamente nalguns filmes realizados no contexto do 25 de Abril de 1974, como Benilde ou a Virgem-Mãe [1975], ou, antes disso, O Passado e o Presente [1972], ou posteriormente Amor de Perdição [1978]. Nem sempre esse horizonte foi muito bem compreendido pelos seus contemporâneos, mas ele é muito claro. No caso de O Passado e o Presente, uma burguesia necrófila que representa a decadência do regime, tendo em conta que é essa mesma burguesia que garante a sua manutenção. No caso da Benilde, uma jovem latifundiária alentejana fechada num enorme casarão, cujo desejo reprimido e irrealizado a leva a acreditar que está grávida, uma figura que ambiciona uma realidade que é muito maior do que aquela a que está remetida. E em Amor de Perdição Oliveira recorre ao texto de Camilo Castelo Branco para repensar o contexto pós-revolucionário em que o filme se estreia, a pensar o desejo, e a frustração desse desejo como o motor de algo revolucionário, ou, pelo contrário, pensar a paralisia daquelas personagens, que até se traduz nos próprios princípios de representação que encontramos no filme como algo que não é tão revolucionário assim. A importância de Manoel de Oliveira é essa: jogar permanentemente com diferentes escalas e diferentes medidas, que vão do local ao universal; e ter sido alguém que, numa perspectiva internacional, sempre dialogou, e em muitos casos antecipou, muitas das questões e clivagens que foram definindo o que é o cinema. É, sem dúvida, um dos grandes inventores, à escala internacional, dessa coisa a que chamamos cinema.

Há, no espólio, alguma peça, ou documento, que de algum modo simbolize a sua figura e a sua obra?

Nunca pensei nisso. Há uma coisa que me impressiona muito no acervo de Manoel de Oliveira que é o rigor e o modo meticuloso como todo ele estava organizado. Manifesta uma consciência muito aguda de que os filmes, os objectos ou os documentos escritos nos sobreviverão, talvez, e se dirigem sempre a um futuro desconhecido. Um exemplo: um cartão-de-visita relativo ao Non – que apresentamos na exposição – está guardado num envelope que tem uma anotação que diz “primeiro projecto (esquema) do filme Non ou a Vã Gloria de Mandar”. E temos páginas e páginas de jornais, nomeadamente do PÚBLICO, com inúmeras anotações de margem, que são comentários seus a essa actualidade jornalística em relação à qual sempre se manteve muito curioso, e crítico. Nalguns casos, com princípios de reflexões. É um acervo muito vasto, abrangente, diversificado, rico, que é um instrumento preciso para perceber a obra de Manoel de Oliveira, o cinema em geral e a cultura portuguesa, também. É um arquivo consciente de si, mas não é só isso – é um arquivo vivo; é o que resta dessa vida intensa.

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