Como era visitar Tchernobil antes de ser moda?

Partimos de Kiev ainda de madrugada. O entusiasmo misturava-se com uma crescente ansiedade. Naquela altura ainda não se tinha estreado a série da HBO sobre Tchernobil, portanto a zona não estava na moda, não se falava, parecia não merecer o interesse de muita gente.

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Início de uma viagem de 11 meses, entre Budapeste até Timor-Leste, sem apanhar qualquer voo. O nosso segundo pais: a Ucrânia. Junho de 2018. Sempre achamos um país subvalorizado, sempre nos interessou a sua história, sempre planeamos visitá-lo. Já que aqui estamos, vamos tentar conhecê-lo da forma mais profunda que conseguirmos, dizíamos um para o outro, enquanto olhávamos para um nome bem sublinhado no nosso caderno: Tchernobil.

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Se numa margem este é o episódio mais importante da história deste país e um lugar ímpar em todo o mundo, na outra margem estava o facto de ter sido o maior incidente nuclear de sempre, o que implica a repetição da pergunta: É seguro? 

Naquela altura, ainda não se tinha estreado a série da HBO sobre Tchernobil, portanto a zona não estava na moda, não se falava, parecia não merecer o interesse de muita gente. A informação não abundava. Percebemos que seria possível visitá-la, mas não de forma independente. Teríamos que ir numa tour, sempre com um guia. O preço seriam cerca de 55 euros — o que aumentou bastante, recentemente. Preocupava-nos as condições de segurança: mas segundo a agência de viagens não só é seguro, como também nos explicam que num voo de longa distância estamos expostos a uma radiação superior. Além disto, o guia faz-se sempre acompanhar de um medidor de radiação, que nos alertaria se nos aproximássemos do limite recomendado. Desculpem o spoiler, nunca aconteceu.

Partimos de Kiev ainda de madrugada. O entusiasmo misturava-se com uma crescente ansiedade. Apesar de tudo, foi-nos recomendado ter o mínimo possível de pele exposta e, apesar do calor, todos vestiam calças e manga comprida. Uma carrinha levou-nos durante três horas até ao primeiro checkpoint onde militares confirmaram os nossos dados e documentos. Vimos imensos trabalhadores. Residem 15 dias consecutivos por mês em Tchernobil e os restantes fora daquela zona, diziam-nos, enquanto entrávamos nas primeiras casas. O que encontrámos foi desolador: objectos pessoais, documentos, fotografias de família, livros comunistas, tudo permanecia na exacta posição em que foi abandonado. Foi dito às pessoas que a evacuação era temporária. Nunca puderam voltar. Seguiram-se piscinas, ginásios, orfanatos e, por último, os carros de choque e a roda gigante do parque de diversão. O ambiente é inquietante, o silêncio persegue-nos. A cidade está deserta, em todas as ruas, todos os cantos, tentamos conceber como seria a vida antes da explosão. Esta era uma das zonas mais prósperas e jovens de toda a União Soviética.

Almoçámos na cantina juntamente com turistas e trabalhadores, obviamente toda a comida provém do exterior. Seguimos para o reactor que explodiu, o número 4. Mesmo a escassos metros, o medidor nunca atingiu valores elevados. Estávamos muito perto de onde se deu o fatídico acidente, mas a sensação era de uma estranha normalidade. Antes de regressar, passámos pelo Duga 3, o local mais secreto de toda a antiga União Soviética. No mapa da época estava marcado como um jardim-de-infância, mas era afinal um radar de detenção de mísseis de longo alcance, onde trabalhavam cerca de 1500 pessoas. Pelo tamanho, pela envergadura, pela história, foi um dos elementos que mais nos impressionou na zona. Entre as deslocações olhávamos para a floresta. É curioso verificar como da tragédia surgiu vida: a ausência humana propiciou um novo ecossistema. Vimos raposas, cães e gatos, mas até ursos voltaram a habitar a área.

Sempre quisemos visitar Tchernobil, sentíamo-nos no meio do nosso livro de História. Foi um dia interessante, mas não tirámos muitas fotos, não falávamos muito. O ambiente era pesado. A nossa disposição não era a melhor. Custava-nos perceber as selfies e poses “instagramáveis”, afinal, estávamos no epicentro do maior acidente nuclear da história do nosso planeta. Pior, só o facto do confinamento — a gigante cúpula que envolve e protege toda a área da central — ter um prazo de validade de 100 anos. “E depois?”, perguntávamos ao nosso guia enquanto regressávamos. Respondeu-nos com um pesado encolher de ombros.

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