O serial killer de Hamburgo é o caso de Berlim 2019

Der Goldene Handschuh, de Fatih Akin, história verídica de um assassino em série dos anos 1970, recusa com energia os bons sentimentos do filme de tema. Ao contrário do olhar sóbrio mas anónimo de François Ozon sobre a pedofilia na igreja católica.

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Der Goldene Handschuh, de Fatih Akin Gordon Timpen/Warner Bros

A Berlinale não é o “festival do tema”? Pois tomem lá um filme para mandar o tema às urtigas: misoginia, violência doméstica, abuso psicológico, mostrado de modo bruto, brutal e chocante, sem pinga de bons sentimentos. Talvez seja exactamente essa a questão: Fatih Akin não quer saber do melhor mundo possível, Der Goldene Handschuh (competição) não tem ilusões quanto à existência de mundos melhores. Há só um, que é este, e é feio e porco e mau e é Alemanha no Outono dos anos 1970. (E sim, há Fassbinder por tudo quanto é sítio.)

Previsivelmente, Der Goldene Handschuh já está a merecer o opróbrio da imprensa, ao mesmo nível das últimas provocações de Lars von Trier. Nem podia ser de outra maneira, porque o assassino em série do filme não tem literalmente redenção possível (nem nada na cabeça, diga-se desde já). E foi também por aí que se elevaram as “maiorias morais” críticas que não vêem redenção possível no percurso de Fritz Honka nem no filme do turco-alemão que fez o seu nome em Berlim com o Urso de Ouro de A Esposa Turca (2004) e ganhou melhor argumento em Cannes em 2007 com Do Outro Lado.

Para esses, recomendamos que se fiquem pelas boas intenções de que estão cheios os muitos filmes bem-comportadinhos e muito bem-pensantes da competição da Berlinale – como o esquecível Systemsprenger de Nora Fingerscheidt, sobre uma menina de nove anos pelo meio do sistema de famílias adoptivas, ou o anónimo Grâce à Dieu, onde François Ozon se atira à pedofilia no seio da igreja católica. O seu filme é literalmente do momento, arrancado das manchetes dos jornais, abordando o caso do arcebispo de Lyon, Philippe Barbarin, actualmente à espera de sentença na justiça francesa por não ter afastado da diocese um padre pedófilo que molestou rapazes ao longo de décadas.

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Grâce à Dieu, de François Ozon Jean-Claude Moireau

Não há nada de sensacionalista no filme de Ozon, impecavelmente investigado e baseado nos factos reais do caso, acompanhando ao longo dos últimos quatro anos os esforços das vítimas para que lhes seja feita justiça. É filme sóbrio, digno, que vai fazendo estafeta entre os homens que foram abusados em crianças (Melvil Poupaud, Denis Ménochet, Swann Arlaud, Éric Caravaca). Mas Grâce à Dieu nunca se afasta do modelo do filme-denúncia à Stanley Kramer ou André Cayatte, com qualquer coisa de telefilme certinho e bem comportadinho, desperdiçando a energia que Ménochet injecta no filme quando surge. Já vimos Ozon muito pior, mas é mais tema do que cinema.

O que torna as reacções extremadas ao filme de Fatih Akin tão compreensíveis como contraditórias – toda a gente passa o tempo a protestar que Berlim tem cinema a menos e tema a mais, mas quando aparece um filme a partir genuinamente a loiça toda cai-lhe tudo em cima (ninguém disse que a imprensa tem de ser sempre coerente…). O que torna tudo mais complicado, no caso de Der Goldene Handschuh, é que esta é uma história verídica da Hamburgo dos anos 1970 e de uma Alemanha de “nós contra eles”, de uma ideia de masculinidade tóxica que não desapareceu por completo por muito na retranca que esteja.

Pior ainda: Fritz Honka, o desfigurado solitário e patético que matou varias prostitutas no bairro da luz vermelha de Hamburgo entre 1970 e 1974, habitado alucinadamente por Jonas Dassler, era mesmo um monstro sem redenção possível; e o filme de Akin, adaptando o romance de Heinz Strunk sobre o caso, desenha um retrato de uma “pequena Alemanha” de gente sem futuro nem dinheiro nem esperança, que caiu pelas falhas do sistema do estado social, ressabiada com a vida e afogando as mágoas na aguardente barata.

Der Goldene Handschuh literalmente cheira a bar rasca, a cerveja e urina e fumo de tabaco, enquanto as juke-boxes e os gira-discos estão permanentemente a tocar a música ligeira alemã dos anos 1970, o “nacional-cançonetismo” lá de sítio, ópio do povo que alimenta os sonhos desfeitos das suas personagens anestesiadas e vitimizadas, para quem a culpa do mundo ser como é nunca é delas – o cheiro nauseabundo das águas-furtadas de Honka, onde ele guardava os corpos numa arrecadação selada, é justificado com os cozinhados exóticos dos gregos do andar de baixo, que “vieram roubar-nos os empregos”.

O racismo casual, a misoginia enraizada, a mulher como escrava do lar não se desvaneceu com os 50 anos entretanto decorridos desde os factos; Akin oferece-nos um espelho distorcido do nosso tempo através de um teatrinho de Grand Guignol com tanto de terrível como de absurdo, pontuado por um humor de um negro que tudo suga, paredes-meias com o trash mais puro, e fazendo a ponte (porque os extremos tocam-se) com o Kinder der Toten de Kelly Cooper e Pavol Laska (e, já agora, com muito do grotesco que Ulrich Seidl anda a filmar). É um grande filme? Não o sabemos dizer (ainda). Mas está aqui criado o “caso” da Berlinale, o filme da edição 2019 que se vai amar ou odiar, e a primeira coisa genuinamente relevante que Fatih Akin faz para aí numa década. Unânime é coisa que Der Goldene Handschuh nunca será.

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