"Um médico não pode recusar a saída" para transportar um doente

O presidente do colégio de emergência médica da Ordem dos Médicos diz que um clínico pode avaliar um doente e dizer que não está em condições de ser transportado, mas "não pode recusar a saída".

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RG Rui Gaudencio - Publico

Vítor Almeida é presidente do colégio de emergência médica da Ordem dos Médicos e também ele é médico de helicóptero do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). O PÚBLICO falou com o especialista para perceber como funciona o sistema e quais os problemas que enfrenta. Vítor Almeida recusa comentar o caso concreto de António Peças, o cirurgião do helicóptero de Évora acusado de recusar serviços de transporte de doentes. Apenas diz que este tem direito a se defender e que se deve esperar pelas decisões dos órgãos próprios. O especialista em emergência médica explica as regras, incluindo que as equipas médicas dos helicópteros têm de cumprir as ordens dos médicos do Centro de Orientação de Doentes Urgentes, e conta que em 18 anos de profissão não se recorda de casos de recusa de transporte de doentes. A conversa pode ser ouvida no episódio do podcast do PÚBLICO dedicado a este tema.

Nos últimos dias têm saído algumas notícias sobre o médico do INEM António Peças. Gostaríamos de perceber como funcionam os helicópteros do INEM. É normal haver recusas de transporte de doentes?
Não é nossa função [do Colégio], nem o vamos fazer, pronunciar-nos especificamente sobre esta situação, que está a ser analisada e avaliada pelo conselho disciplinar da Ordem e pelos órgãos competente. Não é nossa função fazer julgamentos sobre alguém que efectivamente tem direito de se defender e de esclarecer a sua visão da situação como em qualquer outro processo.

É normal haver estas recusas seja por decisão clínica de médicos?
Para que as pessoas percebam como se processa o socorro no serviço de helicópteros de emergência médica do INEM: os helicópteros são compostos por dois pilotos — porque fazemos missões nocturnas, a funcionar 24h/24h, ao contrário de outros países europeus nós temos o sistema a funcionar constantemente — e por um enfermeiro e médico, que são a equipa médica que estão no helicóptero. Estes helicópteros estão sob alçada do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM, que activa os helicópteros para missões. Essa activação pode ser para três tipos de missões: primárias, secundárias e terciárias. O essencial para nós são as primárias, que é voar para o local do acidente ou para muito perto do doente, seja uma aldeia, seja um ponto de encontro de bombeiros. No fundo, para fazer a primeira abordagem ao doente crítico para o qual nos é pedido o socorro. Não é transportar, mas sim sobretudo levar uma equipa médica altamente diferenciada para junto do doente, de uma forma rápida e célere, essencialmente em sítios de difícil acesso.

E há as secundárias...
As secundárias são essencialmente transferências inter-hospitalares — e estas que estamos a discutir nestes casos — em que um hospital pede um transporte porque se trata de um doente crítico, porque tem indicação específica clínica para poder levá-lo para outra unidade hospitalar. Ou seja, transferir um doente para um sítio onde estará mais bem acompanhado e onde haverá possibilidade de o tratar de forma definitiva.

De quem é a decisão de transporte por helicóptero?
Vamos então falar dos transportes secundários e que é uma parte importante do nosso serviço. Os hospitais solicitam, via CODU, o transporte. O médico regulador do CODU comunica esse pedido à equipa médica do helicóptero, e indica-lhe a localidade, que situação clínica é que tem o doente e para onde é que tem de levar o doente. Habitualmente o CODU dá os dados de forma relativamente clara e nem há motivos para estar a discutir ou reflectir... Vou dar um exemplo: 'Temos um doente com uma suspeita de enfarte ou enfarte confirmado na Covilhã e queremos levá-lo rapidamente para a unidade coronária que possa tratá-lo de forma definitiva. O hospital de destino poderá ser Viseu ou Coimbra''. E portanto a única coisa que habitualmente perguntamos [médicos de helicóptero] é se o doente está estável, qual a situação ventilatória dele, o que nos espera e o que nós podemos adiantar antes de sairmos do local ou durante o voo. O papel do médico no helicóptero é e deve ser também aconselhar e ajudar o CODU a tomar a decisão mais correcta. A decisão de sair é sempre do CODU. Mas até podemos dizer 'olhe, o doente já está entubado e ventilado ou não está. Se calhar é preferível já falar com os colegas do hospital para irem entubando'. Ou anestesiar, por exemplo, para o doente estar quieto no helicóptero e de uma forma mais estabilizada, para não nos dar complicações durante o voo. No fundo, é antever complicações. E ainda antes de sair, colaborar para o que será o desfecho final do doente e transportá-lo com segurança.

É normal haver resistências? Obviamente não falando do caso, mas está sempre presente, é um procedimento normal? É normal haver questionamento das decisões de um médico?
Existe uma hierarquia que está muito bem definida e é clara. O CODU, o médico regulador do CODU, é o responsável e quem activa o meio. Há dois factores que podem influenciar: primeiro, o médico tem de cumprir, como é óbvio, e dizer que sim senhora faz a missão, nem tem de estar a discutir; [em segundo] a única coisa que pode e se deve fazer é habitualmente dar sugestões para melhorar. 'E se fôssemos de ambulância, é preferível. Veja lá os tempos'. E de facto às vezes acontece, na própria reflexão com o CODU, dizer que se calhar é a melhor opção. Ou então até vir o piloto dizer que não há condições de voo e encontrar-se um plano alternativo. Isso acaba por ser em colaboração. Mas quem manda sair o helicóptero é o CODU e compete à equipa médica obedecer a essa ordem. Ao chegar ao local, a situação é um pouco diferente. O médico tem a capacidade clínica e o dever clínico para dizer se o doente tem condições para ser transportado ou não. Às vezes, pode ser um doente que está tão mal e numa situação tão crítica que posso chegar à conclusão e dizer 'se agora o transportar num helicóptero, basta-me movimentá-lo de forma mais brusca ou alguma interferência técnica nesta situação e acabo por prejudicar o doente'.

Há janelas temporais definidas? Entre o médico do CODU dizer 'é para fazer o transporte de helicóptero' e a saída há tempos definidos? Assistimos a casos em que há conversas que duram até cerca de uma hora com conferências tripartidas de médicos, dúvidas colocadas...
O habitual, e eu posso falar da minha experiência, porque estou nisto há 18 anos, é que no transporte primário, a saída é praticamente imediata (...) até porque se durante o voo houver dados novos até se pode chegar à conclusão que afinal as vítimas do acidente de viação são todas ligeiras e o helicóptero não é necessário e pode ser desactivado no ar. Volta para trás e ainda bem, porque o helicóptero deve ser utilizado como se fosse uma viatura médica de emergência e reanimação normal. Nas transferências, o habitual também é sair ao fim de 5, 6 minutos, preparar o material que eventualmente faltar ainda preparar, tirar algumas dúvidas sobre o estado clínico do doente. São telefonemas que demoram habitualmente 5, 6, 7 minutos. E habitualmente enviamos o status que estamos de saída, avisamos o CODU que vamos sair, depois temos de dizer quando chegamos ao hospital de destino e quando estamos de novo operacionais, porque por vezes temos de abastecer. Estamos a falar de espaços de poucos minutos...

Não é usual...
Não é usual, como o bastonário [da Ordem dos Médicos] muito bem disse, o que há aqui é uma situação anómala. Devo dizer que do ponto de vista da função isto é anómalo. E de facto o médico não pode recusar a saída. O médico pode sim junto do doente dizer assim: 'olhe a minha decisão final é que não vou levar o doente", porque avalio clinicamente que o risco de o transportar é maior do que eventualmente deixá-lo estar no hospital e estabilizá-lo mais uma hora ou duas. Não é a primeira vez que nos acontece.

Não tem conhecimento de outros casos de recusa de helitransporte?
Em 18 anos de helicóptero, não me lembro de na nossa região - estou a falar de Santa Comba Dão - de haver manifesta recusa de qualquer médico de fazer um transporte. Não conheço a realidade de outros sítios, mas nem na VMER nem no helicóptero conheço recusas. É óbvio que existem situações em que a nossa opinião acaba por ser [contrária] - até porque temos alguma experiência desta área - mas fazemos o debriefing após. Contactamos o CODU e dizemos 'atenção, acabámos por levar o doente, mas não se justificou. Devíamos ter mais cautela'. Em algumas situações até devíamos ter saído antes. Mas isto é normal.

Mas só depois?
Sim, exactamente. Posteriormente, discutimos os casos. A medicina é uma ciência que não é linear e se calhar há decisões que tomamos que achamos correctas e à segunda vista se calhar achamos que podíamos ter feito melhor. Ainda bem que assim é. Porque se não discutirmos cada abordagem dos doentes, nunca vamos aprender a melhorar aquilo que fazemos. E portanto é perfeitamente normal e até desejável, que os médicos do CODU e do helicóptero - e até devem fazê-lo - falarem e dizerem se correu bem, se calhar futuramente podemos fazer desta forma ou ir para outro hospital. É importante haver feedback, mas de forma cooperativa e em colaboração com o médico. Não deve ser de forma confrontativa e estar a questionar. Não conheço nenhuma situação em que alguém se atreva a telefonar e discutir com o médico do hospital porque é que envia ou não um doente. Não é usual.

O que está a acontecer?
Os portugueses têm de perceber que neste momento do ponto de vista formativo, o país tem equipas médicas - médicos e enfermeiros - altamente diferenciados. Em termos de helicópteros estamos a um nível muito superior aos que se faz na Europa, estamos como nunca estivemos, qualitativamente bem, neste momento. Temos estabilidade porque temos um contrato que nos permite durante quatro anos ter aeronaves de elevada qualidade e com equipas fixas e portanto do ponto de vista da qualidade nunca estivemos tão bem. Quando surgem estas notícias, sobretudo depois de um trágico acidente, deixa-nos muito desconfortáveis.

Continuam a ter dificuldades a ter as escalas de equipas médicas nos helicópteros?
Neste momento, não há buracos nas escalas, a situação está estabilizada. Mas o INEM só tem meia dúzia de médicos no quadro e acaba por funcionar, naquilo que é a sua resposta médica, essencialmente de médicos que são contratados - no helicóptero a recibo verde ou então prestam serviços em viaturas médicas através dos hospitais onde estão localizadas essas viaturas. O INEM tem de, com alguma engenharia, resolver as escalas. Como é que o faz? Acaba por ter um número elevado de médicos e enfermeiras...

O que não acontecia no caso deste médico em concreto que chegava a fazer mais de 20 turnos ou mais por mês. Isso é habitual para terem as escalas preenchidas?
O habitual, aqui na zona centro, é os médicos fazerem dois, três turnos no máximo por mês, turnos de 24 horas é o habitual. Um, dois turnos, três no máximo. A zona sul tem manifestamente défice de recursos humanos. Não é apenas um problema do INEM, mas dos hospitais. É uma zona pouco atractiva e este serviço é mal remunerado, temos de admitir isso. Mas é aliciante e as pessoas acabam por gostar deste tipo de serviço, apesar do risco que corremos. Isto faz-se por gosto. Não se faz porque se vai ganhar dinheiro. O INEM não tem médicos no quadro porquê? Porque não existe uma carreira própria para o INEM. Os médicos não vão ter uma progressão na carreira. Como não existe uma especialidade em Portugal, ao contrário de outros países europeus - só faltam quatro países na Europa para ter uma especialidade numa carreira de urgência/emergência - também por aí não conseguimos aliciar as pessoas. Esse é o grande drama em Portugal que abrange não só os helicópteros, mas os serviços de urgência. Vivemos, essencialmente, do corpo clínico que está neste momento manifestamente sobrecarregado, com grande sacrifício dos internistas e que estão exaustos e sobrecarregados, e de médicos tarefeiros de várias especialidades que trabalham em escalas de urgência.

A questão da emergência médica não é apenas de helicópteros, mas transversal?
Não chamaria de emergência, é de urgência/emergência. Acaba por ser toda uma estrutura que está interligada. Não podemos separar o INEM de uma urgência hospitalar. Temos de ver tudo de forma integrada. O ideal seria os hospitais fazerem acordo com o INEM, dizerem que têm profissionais, o INEM abre vagas e gerir-se quadros partilhados entre o CODU, os helicópteros e as VMER. Esses quadros partilhados poderiam resolver os grandes défices de pessoal do INEM. Mais uma agravante, não havendo esta especialidade, a resposta a situações de catástrofe, como a que vivemos no ano passado, é muito mais difícil de gerir.

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