Parlamento discute propostas de BE e PAN para mudar crime de violação

Parlamento vota na sexta-feira propostas do PAN e do BE para tornar central o consentimento da vítima na definição do crime de violação. Governo prometeu proposta, mas ainda não tem novidades.

Foto
“O principal objectivo da alteração é garantir que é retirada a necessidade de existência de violência”, afirma a deputada Sandra Cunha Getty Images

São duas as últimas propostas que chegaram ao Parlamento para alterar o crime de violação: um projecto do PAN, apresentado no início de Dezembro, e outro do Bloco de Esquerda, que deu entrada no Parlamento logo antes do Natal.

A proposta do BE coincide com a do PAN na intenção: que a ausência de consentimento da vítima seja determinante para que se esteja perante um crime de violação. “O principal objectivo da alteração é garantir que é retirada a necessidade de existência de violência”, diz ao PÚBLICO a deputada bloquista Sandra Cunha, que explica que a lei actual determina que “para que o crime seja tipificado como violação, tem que existir violência” ou ameaça grave.

Em Setembro, gerou polémica o caso de uma jovem violada numa discoteca, cujos agressores foram condenados - com pena suspensa - por crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, crime que BE e PAN querem que seja integrado na violação e coacção sexual. Ambos os projectos propõem um aumento das molduras penais: o BE pede uma pena mínima de cinco anos, o PAN de seis, de forma a reduzir o número de penas suspensas nos casos de violação.

Com agendamento a pedido do PAN, os projectos serão discutidos na quinta-feira em plenário e votados no dia seguinte. Contactados pelo PÚBLICO, diferentes partidos empurram a decisão sobre o sentido de voto para esta quarta-feira, já depois da reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias em que será apresentado o relatório sobre o projecto de alteração legislativa do PAN, para o qual foram pedidos pareceres a várias entidades.

Um dos pareceres já recebidos foi o da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que concorda com “a suficiência da falta de consentimento” para que se verifique o crime de coacção sexual ou de violação, substituindo a formulação actual, mais restrita, que tipifica determinadas formas de violência ou “constrangimento”​. Em conversa com o PÚBLICO, Frederico Marques, da APAV, concorda que a obtenção de prova poderá ser mais complicada — “mas não mais difícil do que hoje”, garante, uma vez que mais actos poderão ser considerados crime.

Mais "formação de magistrados"

No parecer, a APAV considera que a ampliação das molduras penais “não é o factor decisivo para uma melhor determinação das penas concretas” — ou seja, não discordando do aumento das penas para crimes sexuais, acreditam que “o recurso sistemático à pena de prisão suspensa na sua execução” não se deve às penas previstas no Código Penal. A associação defende, por isso, mais investimento na “formação dos magistrados, como forma de aumentar a sua capacidade de compreensão sobre a vitimação nas suas diversas vertentes”.

Além de centrar a coacção sexual e a violação explicitamente na ausência de consentimento, o BE — à semelhança do PAN — propõe também que estes se tornem crimes públicos, ou seja, não dependentes de queixa das vítimas para que o processo seja levado a cabo. Mas estará o sistema preparado para responder de forma adequada às vítimas? “O sistema está tão preparado como estava na altura em que a violência doméstica passou a crime público. Agora até estará mais preparado, porque já tem essa experiência”.

A Associação para o Planeamento da Família (APF) foi outra entidade à qual o Parlamento pediu um parecer sobre o projecto do PAN. No documento, a APF “expressa a sua total concordância com a focalização no consentimento”, assim como com a natureza pública do crime e o agravamento das molduras penais, pedindo mais atenção para a violência sexual das relações de intimidade, no âmbito das quais "a noção de consentimento é muitas vezes de difícil entendimento e avaliação".

Também a Amnistia Internacional, que tem apontado falhas na legislação portuguesa, entregou nesta terça-feira um parecer em que apoia o reconhecimento da falta de consentimento “como elemento do tipo legal dos ilícitos”. A organização recorda que o comité da CEDAW, a convenção da ONU para a eliminação da discriminação contra as mulheres, já tinha alertado o Governo para a necessidade de tornar claro o conceito de consentimento no crime de violação, de forma a abranger todas as formas de violência sexual.

Em 2015, na sua última avaliação a Portugal, o comité recomendava ainda a criação de mais estruturas de apoio a vítimas de violência sexual - Portugal tem actualmente três centros especializados, dois para mulheres e um para homens; na altura, não existia nenhum -, assim como a formação de profissionais na área da saúde, em particular no que toca à violação em contexto de relações de intimidade. 

A Convenção de Istambul

Especialistas dos centros de apoio especializado para vítimas de violência sexual têm apelado ao alargamento do prazo de denúncia do crime, que actualmente é de seis meses. “No nosso projecto não está contemplado, mas é um projecto que tem todas as condições para receber contributos em sede de especialidade. Estamos abertos a mexer nele e continuar a trabalhar nele”, diz Sandra Cunha.

A alteração proposta pelo BE e o PAN para a alteração de crimes sexuais surge para aproximar a legislação portuguesa dos princípios da Convenção de Istambul — o tratado do Conselho da Europa sobre violência contra as mulheres e violência doméstica. 

Em 2015, na sequência da ratificação da convenção por Portugal, foi aprovada uma alteração ao Código Penal que abrangeu o crime de violação, com uma reformulação para abranger os casos em que não havia uso de força física, e alargando ainda a moldura penal para seis anos, de forma a permitir a aplicação de pena efectiva.

Em Outubro, o Governo prometeu que iria apresentar propostas para alterar os crimes sexuais no Código Penal, em resposta à avaliação em curso sobre a aplicação da Convenção de Istambul em Portugal. Três meses depois, contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça continua sem novidades e volta a não dar prazos para apresentar as suas propostas.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários