Duas febres na mesma semana: Shoplifters e Ferrante

Os livros de Elena Ferrante encontram identificação em distintas gerações. Shoplifters, por sua vez, não nos toca por identificação, mas sim pelo murro no estômago que sentimos com alguma revolta pelo meio.

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Vimos chegar na mesma semana a Portugal o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Shoplifterse o documentário sobre a saga de livros de Elena Ferrante.

Gostei muito de ambos. O documentário porque não se foca na personalidade misteriosa que escreve estes livros, mas sim na razão pela qual a narrativa de A Amiga Genial, História de um Novo Nome, História de Quem Vai e de Quem Fica e História da Menina Perdida seduziu emocionalmente milhares de pessoas em todo o mundo, tendo vendido 30 milhões de exemplares.

E é aliás esta sedução emocional que me faz juntar Shoplifters e a "febre" Ferrante na mesma crónica.

Os livros de Elena Ferrante, que eu espero que sejam adaptados para o cinema um a um, encontram identificação em distintas gerações — o que não é tarefa fácil — e exploram de uma forma muito bonita a amizade entre duas mulheres, Lila e Lenù. Parafraseando a autora, "uma amiga mulher é tão rara quanto um amor verdadeiro". E quem não tem um pilar feminino nas suas vidas?

Apercebi-me deste efeito intergeracional quando a minha mãe foi internada este ano e precisei de lhe levar um livro como distracção. Imediatamente, sem muito tempo para pensar, peguei na Amiga Genial, porque me recordei da bonita amizade que ela sempre descrevera com a Maria da Luz.

Shoplifters, por sua vez, não nos toca por identificação, mas sim pelo murro no estômago que sentimos com alguma revolta pelo meio. Conseguimos ver espelhada na tela de cinema a nossa própria ética.

O cinema pode e deve ter esta magia, ao expor friamente cenários improváveis de vidas que julgamos ficcionais mas que muitas das vezes não o são. Shoplifters confronta a violência infantil e uma extrema falta de amor versus o amor no seio de uma família de ladrões que passam a usar a criança nos seus roubos. Gente que rouba sobretudo em supermercados para sobreviver, o que atribui aliás o nome ao filme.

Esta dualidade entre certo e errado fez-me recordar o livro Ética para um Jovem, de Fernando Savater, que li ainda adolescente e de vez em quando ainda folheio. A linha entre o certo e errado é, talvez, dos dilemas humanos mais difíceis de definir e a magia deste filme está aqui. Será melhor para a criança ter amor e um futuro condenado a uma vida de criminalidade, ou viver sem conhecer o amor incondicional, podendo frequentar a escola e seguir o seu rumo?

Nunca nos perguntamos mas não é por acaso que as moedas têm dois lados distintos e podemos todos aprender com isso em vários momentos da nossa vida sobretudo nos momentos de dúvidas e questionamentos.

É que, no fundo, não existe, nem tem de existir, um lado mais certo ou mais errado, um lado verdadeiro ou falso. Existem dois lados e os dois são em si mesmos, verdadeiros. Por fim, é delicioso ver como este filme quebra o conservadorismo japonês, e uma vez mais expõe a realidade que nos contei na última crónica — o que vem do Japão está na moda e ainda bem.

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