Com muito, com pouco ou sem dinheiro nenhum, a aventura de fazer cinema no século XXI

Cláudia Varejão, Matías Piñeiro, Paulo Branco e Pedro Pinho trouxeram ao Fórum do Real do Porto/Post/Doc uma reflexão sobre as mudanças de paradigma e de condições de produção na ficção e no documentário.

Foto
RENATO CRUZ SANTOS

“Isto é tudo mentira, mas aquilo que todos sentimos é verdade”. Já perto do final do segundo debate do Fórum do Real, a realizadora Cláudia Varejão (Ama-san) recordou esta citação de João Botelho para explicar que, na prática, fazer cinema (documentário, ficção ou o que está nas margens entre os dois) parte sempre de um desejo e de uma paixão. “Todos os realizadores filmam, uns com cinco mil euros outros com 50 mil. Mas a gramática do cinema é sempre a mesma.”

É um bom resumo do segundo dos três painéis do programa anual de debates do Porto/Post/Doc. Em causa na sessão de quarta-feira estava o modo como produzir filmes tem mudado ao longo dos últimos anos a par das próprias alterações no consumo generalizado e globalizado de imagens. Além de Varejão, cineasta que começou carreira na ficção e se “mudou” para o documentário, estiveram na mesa o argentino Matías Piñeiro, alvo de retrospectiva no festival, que faz os seus filmes com pouco dinheiro e abrindo a ficção à realidade que o rodeia; o português Pedro Pinho, integrante do colectivo de produção Terratreme e realizador de A Fábrica de Nada; e o produtor Paulo Branco, figura incontornável do cinema português.

Branco, que invocou repetidamente cineastas com quem trabalhou regularmente como Alain Tanner, João César Monteiro ou João Canijo, admitiu que a sua experiência de produtor esteve sempre mais do lado da ficção, mas defendeu que o papel de um produtor é “tentar perceber o processo de um autor” e encontrar maneiras de os filmes existirem. O produtor de Mistérios de Lisboa ou A Cidade Branca não hesitou em levantar-se contra a “formatação excessiva” dos concursos de financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual, afirmando que é preciso “dinamitar” o actual modelo. “As pessoas têm de acreditar que é possível fazer cinema sem ficar à espera do conforto. É importante perceber que é possível encontrar outras fontes de financiamento, e os produtores têm uma palavra a dizer na reinvenção do modo de fazer filmes. Sinto que deixou de haver risco, tanto artístico como de produção. Um artista não tem de ter medo de arriscar, e isso vê-se na obra”, afirmou. Nas suas palavras, é importante “reconquistar uma liberdade de filmar” que escape a formatações, citando o caso de Jean Eustache e do seu célebre A Mãe e a Puta, "feito com quatro pessoas e quase sem dinheiro.”

Concordando com Branco que “mais dinheiro não implica forçosamente ter uma equipa maior”, Pedro Pinho explicou que a Terratreme surgiu precisamente porque ele e os seus parceiros no colectivo "não encontravam nenhuma resposta à urgência" que tinham "de filmar”. A produtora, que está por trás de filmes de Valérie Massadian, Adirley Queirós, Susana Nobre ou José Filipe Costa, procura “encontrar o modelo de produção adequado a cada filme”, no equilíbrio possível do risco e das responsabilidades. Enquanto cineasta, Pinho fala da rodagem como "uma luta" entre o realizador que é e os acontecimentos: "Sou tanto mais bem-sucedido quanto tiver a agilidade para construir uma narrativa a partir de tudo aquilo que não estava previsto no guião e que acontece em frente à câmara.” O cinema, diz, é uma arte colectiva, uma arte da “polifonia” combinando “olhares, vozes e participações” de todos os envolvidos.

É por aí, aliás, que Matías Piñeiro explica a sua filmografia, em que cada projecto representa “uma fotografia, um registo de um momento em que um conjunto de pessoas se encontra num plateau”. Afirma ter encontrado o equilíbrio ideal para o seu cinema: “Faço o filme que quero. Trabalho com pouco dinheiro, sim, mas isso permite-me falar com menos intermediários, resolver mais depressa as coisas. Gostaria de ter mais um pouco de dinheiro, claro. Mas não sei se isso justificaria perder a liberdade que tenho.”

Cláudia Varejão admite que não tem dinheiro para pagar às pessoas que filma e "que não são actores, mas que o mereceriam certamente”. Mas defende que “a liberdade de reagir à realidade dentro do documentário é muito distinta da da ficção; não tenho 20 pessoas a olhar para mim, nem tenho de gerir uma equipa grande no dia-a-dia. Sinto-me mais livre.”

O Fórum do Real termina esta sexta-feira, pelas 18h30, no Pequeno Auditório do Rivoli, com um último painel dedicado ao cinema de António Reis e Margarida Cordeiro – alvo de retrospectiva nesta edição do Porto/Post/Doc – com a presença da escritora e argumentista Regina Guimarães e dos realizadores Marta Mateus, João Pedro Rodrigues e Manuel Mozos.

Sugerir correcção
Comentar