Berlusconi e o triunfo da vulgaridade, segundo Sorrentino

Um retrato terno e patético do antigo primeiro-ministro italiano e dos que se deixaram fascinar por ele, por entre festas, drogas, dinheiro e corrupção. Esta segunda-feira no Lisboa & Sintra Film Festival.

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Berlusconi (o actor Toni Servillo) com a mulher, Veronica Lario (Elena Sofia Ricci) DR
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Sergio Morra (Riccardo Scamarcio) DR

Sergio Morra quer aproximar-se de Silvio Berlusconi custe o que custar. O antigo primeiro-ministro italiano é a sua porta para subir na vida, acredita o ambicioso jovem que sonha tornar-se eurodeputado. E a melhor forma para chamar a atenção de Berlusconi é pôr-lhe debaixo do nariz um número considerável de mulheres – praticamente nuas, de preferência.

Não há nada de subtil na Itália de Berlusconi, apesar de ele dizer que gosta de seduzir e que, por isso, não quer prostitutas nas suas festas, conhecidas pelo igualmente pouco subtil nome de bunga bunga (outros políticos não serão tão exigentes no que diz respeito à sedução, como fica claro logo na cena inicial do filme).

O mundo que o rodeia, e que Loro (Silvio e os Outros, em português) mostra sem complacência durante duas horas e meia, tal como se verá esta segunda-feira às 21h no Centro Olga Cadaval, em Sintra, integrando o Lisboa & Sintra Festival, é o de um certo desespero vazio, alimentado por drogas e corpos que se contorcem em danças de sedução, na esperança de conseguir a atenção dele. “Ele”, aliás, é como Berlusconi aparece identificado no telemóvel de uma das suas amantes, Kira (Kasia Smutniak).

Sergio Morra (Riccardo Scamarcio) não tem as qualidades físicas que possam seduzir Berlusconi (interpretado no filme por Toni Servillo); tem, contudo, a capacidade de juntar dezenas de mulheres e de organizar à beira da piscina da sua mansão da Sardenha – exactamente em frente à do ex-primeiro-ministro – uma festa-orgia destinada unicamente a impressioná-lo. Mas, depois de horas de danças lascivas, Berlusconi ainda não apareceu, o sol começa a pôr-se, o efeito da droga a desvanecer-se e todos param, alinhados, em silêncio, voltados para a mansão dele, olhares de abandono, suspensos de um sinal.

A imagem diz muito do que foram os anos Berlusconi em Itália – o empresário que em 1994 criou o partido Força Itália e liderou governos em três momentos, entre 1994 e 95, de 2001 a 2006 e de 2008 a 2011 –, anos de um país suspenso e fascinado com o charme e as promessas de um homem que se propunha governar com a mesma eficácia com que sempre tinha dirigido as suas empresas e que acabou enredado em inúmeros escândalos sexuais e de corrupção, com o país mergulhado numa crise financeira (e, diriam muitos, moral).

Uma certa ternura

Em Loro, há um momento em que alguém lhe pergunta: “O que é que esperavas: ser o homem mais rico do país, tornares-te primeiro-ministro e ainda ser loucamente amado por toda a gente?”. A resposta é a óbvia: “Sim, era exactamente isso que esperava.” Para lá chegar, não importa muito o que tem de fazer. Pode até fazer o bem, porque, como lhe lembra um amigo, “o altruísmo é outra forma de sermos egoístas”.

O que pode ser desconcertante em Loro é uma certa ternura com que Sorrentino olha para Berlusconi. E que é assumida nas entrevistas que o realizador deu: “Loro não é pró nem anti-Berlusconi. É um olhar terno para as fraquezas de um velho.” Toni Servillo – que já tinha sido outro antigo primeiro-ministro italiano caído em desgraça, Giulio Andreotti, no filme Il Divo, de Sorrentino – afirma numa entrevista à Vulture que uma das suas preocupações foi evitar a caricatura. “Não me parece eficaz mostrar um homem que foi tão poderoso durante vinte anos como um cartoon.”

A tentação de transformar Berlusconi numa caricatura de si próprio seria grande – o bronzeado artificial, o excesso de maquilhagem, o cabelo pintado, o sorriso que parece um anúncio a uma pasta de dentes, o fascínio por si mesmo, a desfaçatez com que diz coisas como “não preciso de ir para a política por causa do poder, tenho casas por todo o mundo, barcos estupendos, belos aviões, uma bela mulher, uma bela família… estou a fazer um sacrifício.”

Mas o Berlusconi de Sorrentino é mais complexo do que isso e é também diferente do retrato que Nanni Moretti fez dele no filme O Caimão. Aí, o antigo primeiro-ministro (interpretado pelo próprio Moretti) surge perante o tribunal para responder às acusações de fraude e corrupção e acaba saindo para ser aplaudido pelo povo, que ataca os juízes, insultando-os.

Vender “o guião da vida”

Loro – que em Itália se dividia em dois mas para a distribuição internacional teve uma nova montagem que junta as duas partes – relata os esforços de Morra para chegar ao líder mas também as crises de um Berlusconi que se sente envelhecer, que receia ter perdido as suas capacidades de sedução e que tenta salvar o seu casamento com Veronica Lario (de quem viria a divorciar-se em 2010, no filme interpretada por Elena Sofia Ricci e apresentada como uma entusiasta leitora de José Saramago).

Há outra cena na qual Berlusconi, no meio de uma das festas bunga bunga, tenta seduzir uma jovem de 20 anos, apenas para a ouvir dizer que ele tinha um hálito igual ao do avô dela, “nem perfumado nem malcheiroso, apenas o hálito de um velho”.

Confrontado com as suas inseguranças, hesitando sobre a sua capacidade de voltar a ser primeiro-ministro (para isso só tem de conseguir convencer seis senadores a mudar de ideias), Berlusconi quer perceber se mantém intactas as capacidades que, no início da sua vida, fizeram dele um extraordinário vendedor de casas. Para isso, pega no telefone e liga a uma mulher desconhecida com o intuito de lhe vender um apartamento – é uma brilhante cena em que Servillo usa todos os seus poderes de sedução para garantir que a mulher acaba, inevitavelmente, (con)vencida e pronta a gastar o que tem e o que não tem por uma casa que nem sequer está construída.

Fundamental não é o que se diz, “tudo depende do tom” com que se diz, há-de explicar Berlusconi ao neto – “o importante é que acreditaste”, conclui. E ele sabe vender melhor do que ninguém porque conhece “o guião da vida”.

Um dos momentos famosos da carreira político-televisiva de Berlusconi (que começou a sua vida a vender aspiradores e, depois, como crooner em navios de cruzeiro, entrando mais tarde no sector da construção) foi aquele em que, em plena campanha eleitoral de 2001, apresentou o seu Contrato com os Italianos, no programa televisivo Porta a Porta: um documento com cinco promessas que se tornaria válido através dos votos dos italianos, garantindo a sua vitória – que veio, efectivamente, a acontecer.

Um outro filme, o documentário Videocracy (2009), do italo-sueco Erik Gandini, mostra precisamente essa Itália transformada numa “República-TV”, em que um único homem dominou durante décadas três canais privados de televisão, usando o entretenimento para fazer uma revolução cultural, ética e estética no país, num fenómeno a que Gandini chamou a “maldade da banalidade”.

E, a esse poder, o mesmo homem juntou um outro: o político (e, com ele, os três canais estatais), tornando-se primeiro-ministro, controlando as regras do jogo e tentando, entre outras coisas, manipular o poder judicial para salvar as suas empresas dos processos em que estavam envolvidas.

No fim, só resta o espelho

O que parece evidente é que, naqueles anos, os italianos – depois de assistir à derrocada, por entre escândalos, dos partidos tradicionais, da Democracia Cristã de Andreotti ao Partido Socialista de Bettino Craxi, que tinham dominado a vida política desde sempre – queriam ser seduzidos pela ilusão de uma dolce vita e identificavam-se com o célebre hino de campanha eleitoral, que proclamava “ainda bem que Silvio existe” (Meno male che Silvio c’è!).

Na mesma entrevista à Vulture, Sorrentino diz que o seu filme “é sobre o triunfo da vulgaridade”, explicando, contudo, que não cabe a ele dizer que a vulgaridade é feia. “Isso seria uma forma excessivamente maniqueísta de olhar o mundo. […] é necessário mostrar a beleza da vulgaridade. Ela é bela. Se não, porque seria tão popular?”.

Mais fácil do que vender um apartamento terá sido convencer milhões de pessoas a votar nele e a acreditar nas suas promessas, que apresentou como se se tratasse de um concurso semelhante aos muitos que durante anos (e ainda hoje) encheram os seus canais – dinheiro fácil, mulheres bonitas, um mundo de superficialidade e vazio que se tornou o sonho de muitos italianos.

Mas, como diz Kira, a amante de Berlusconi, a Sergio Morra, há, no final de tudo, um problema para quem aceitou este pacto: “Quando os jogos acabam, só resta o espelho. E nós não suportaremos ver-nos nele.”

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