Geringonça 4 - Ases da austeridade 0

Os quatro Orçamentos da "geringonça" constituem uma cabal refutação das previsões da direita austeritária.

Chegada a apresentação do Orçamento do Estado para 2019, chegamos também àquele momento do ano em que se prova de novo que é compatível definir um orçamento de que a esquerda goste — ou então não o aprovaria, como vai aprovar — e continuar a fazer parte do euro e do projeto europeu. Durante anos houve quem, à esquerda e à direita, nos assegurasse da incompatibilidade de ambos os objetivos. A direita austeritária dizia que um governo de esquerda iria resultar num descalabro orçamental, porque para a direita austeritária os cortes eram a única maneira de estar no euro e na UE. A posição eurofóbica de muita esquerda consistia em aceitar o argumento de fundo de que para não fazer cortes seria necessário sair do euro (o que, como já foi demonstrado à saciedade, acabaria por implicar também sair da UE).

Mas havia uma falha em ambos os raciocínios.

Quanto à direita austeritária: é claro que fazer cortes permite à partida fazer descer o défice — o problema é que isso pode ter um impacto macroeconómico que resulta em mais (e não menos) descontrole orçamental. Os cortes podem induzir uma recessão e esta levar a menos arrecadação de impostos e portanto a novos cortes (além de pôr a segurança social sob pressão com o pagamento de mais subsídios de desemprego). Por sua vez, isto pode levar à necessidade de Orçamentos retificativos, que põem sob dúvida a capacidade do estado português cumprir com as suas previsões orçamentais, agravando o problema de credibilidade que a direita austeritária dizia querer resolver.

Por isso os quatro Orçamentos da "geringonça" constituem uma cabal refutação das previsões da direita austeritária. Não só porque a esquerda conseguiu fazer quatro orçamentos em quatro anos, mas principalmente porque — até agora — a esquerda nunca precisou de fazer nenhum dos Orçamentos retificativos em que a direita era useira e vezeira.

Mas a direita não aceita essa refutação e tenta negá-la de duas formas diferentes, contraditórias entre si. A primeira é continuar insistir em que a esquerda gasta demasiado, e que só não aconteceu ainda um episódio de descontrole porque o diabo não apareceu ao virar da esquina. A segunda consiste em dizer, pelo contrário, que a esquerda prolonga a austeridade, agora sob a forma de cativações. Ora isto confunde cortes, que são necessariamente uma forma de austeridade, com cativações, que podem sê-lo ou não (para resumir: num corte os departamentos do estado pedem x ao ministro das finanças e ele diz “vais levar o que levaste no ano passado, menos y”; numa cativação, o ministro das Finanças responde “toma uma percentagem de x e quando precisares do resto vem justificar porque tens de fazer a despesa que falta”). O problema está mais em saber como a cativação é libertada do que na cativação em si, um mecanismo de execução orçamental que pretende, acima de tudo, facilitar a chegada ao fim do ano com os dados da execução a baterem certo com as previsões, sem necessidade de Orçamento retificativo (o outro método possível, o orçamento de base zero, é muito mais rígido e tendencialmente austeritário).

Seria melhor para a direita que escolhesse apenas um dos argumentos a usar contra a esquerda. Dizer em simultâneo que a esquerda é uma gastadora irresponsável e que a esquerda está no fundo a prolongar sonsamente a austeridade acaba por dar apenas a ideia de que os orçamentos da "geringonça" foram compromissos entre o que é possível e o que é desejável — como devem ser — com a grande diferença de que, chegado o fim do ano, as contas batem certo. E com isso a direita perde uma oportunidade de demonstrar o que faria de diferente dentro de cada orçamento, em vez de sistematicamente profetizar que o Orçamento vai dar errado no seu conjunto.

Essa crítica, no entanto, vai valer cada vez mais para a esquerda também.

Se voltarmos um pouco atrás, veremos que a esquerda eurofóbica também dizia que seria impossível inverter cortes, recuperar rendimento, e continuar no euro. Só que sempre tentou negar a realidade de que sair do euro para desvalorizar o novo escudo significaria com quase certamente sair da UE e cortar o país dos seus principais mercados. Uma saída do euro tornaria os orçamentos portugueses mais imprevisíveis, e mais austeros. O exemplo do "Brexit", que conseguiu a proeza de manter o Reino Unido, mesmo depois da crise, como único país que contrai salários mesmo quando cresce (pouco), sugere que governar à esquerda saindo da UE é bem mais difícil do governar à esquerda ficando na UE.

A prova de que é possível fazer quatro orçamentos tranquilos, sem retificativos, com aprovação da esquerda e continuando no euro e na UE deveria servir de lição tanto para a direita austeritária como para a esquerda eurofóbica, apesar das teimosias de uma e da outra. Quando finalmente aprenderem essa lição, será altura de começar a discutir que país queremos, a longo prazo, dentro do euro e dentro de cada orçamento. Esse será o desafio da próxima legislatura. Esperemos que até lá a "geringonça" entenda as consequências das suas próprias vitórias.

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