Nasceu um cinema itinerante na Trafaria que sonha percorrer as vilas piscatórias do país

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Sofia Costa Pinto lembra-se bem do dia em que decidiu fazer uma projecção do vídeo Tsukiji do artista plástico norte-americano Allan Sekula (1951-2013) para um grupo de pescadores na Cova do Vapor, em Almada. Sofia recorda o que ouviu: “Oh pá olha lá aquele peixe, aquilo é uma corvina?” Os pescadores ficaram “loucos”, conta ao PÚBLICO. Discutiam entre eles os tipos de peixe, a maneira de trabalhar. Sofia Costa Pinto tinha-se cruzado com o filme num contexto artístico, na escola de arte Maumaus onde estudava na altura, em Lisboa. O filme, sobre o maior mercado de peixe do Japão, faz parte do trabalho de várias décadas de Allan Sekula, também historiador e crítico de arte, sobre os mares e as zonas portuárias do mundo inteiro. De repente, as imagens encontravam novo eco “num bar com pescadores a beber licor”, conta Sofia. Soube ali que haveria de fazer um projecto de cinema itinerante, para levar o cinema onde ele não existisse.

Agora, esse cinema móvel ao ar livre está praticamente pronto e vai estrear-se na Trafaria, vizinha da Cova do Vapor, e onde até finais dos anos 90 havia um cineteatro que hoje está em ruína. A estrutura é constituída por 50 pequenos bancos de madeira e metal, triangulares, que formam um anfiteatro modular, adaptável a qualquer espaço. O ciclo de cinema Cinemar, que acontece esta sexta-feira no Largo da Igreja e no sábado no antigo Presídio, reúne cinco filmes sobre a pesca e o mar, numa selecção que vai desde o blockbuster À procura de Nemo até Tsukiji de Allan Sekula, passando por Lu Tempu Di Li Pisci Spata, do realizador italiano Vittorio de Seta, um documentário de 1955 sobre a pesca do espadarte. Para Sofia, artista visual a viver em Portugal, era importante misturar “arte e entretenimento”. Além disso, diz ao PÚBLICO, “ver um filme destes num lugar que cheira a peixe eleva a experiência a outro nível”. A mostra inclui ainda os filmes Ponyo (2008), de Hayao Miyazaki e Ama-San (2016) da portuguesa Claúdia Varejão.

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Estrutura do cinema itinerante DR

O projecto de cinema itinerante começou a desenhar-se depois de Sofia Costa Pinto ter sido contactada pela cooperativa francesa Collectif ETC, que este ano foi convidada a construir o pavilhão francês na Bienal de Veneza. O grupo de arquitectos, nascido em 2009, é um colectivo em fuga da arquitectura tradicional, interessado numa arquitectura efémera, na ocupação do espaço urbano, no diálogo com os territórios. No início de Outubro, onze elementos viajaram de Marselha, onde estão sedeados, até à Trafaria, com o apoio do Instituto Francês. Juntos, deram corpo ao sonho de Sofia. Todo o trabalho foi realizado nas últimas duas semanas no espaço do antigo presídio da Trafaria, em Almada. O local, sob alçada da Câmara Municipal de Almada há quase 20 anos, continua à espera de reabilitação.

A primeira vez que Sofia “ocupou” a antiga prisão foi em 2014, no âmbito de uma residência artística apoiada pela Associação Ensaios e Diálogos (EDA) – da qual Sofia é presidente — um colectivo com intervenção sociocultural e urbana na zona da Trafaria e Cova do Vapor. Dois anos depois, integrados na Trienal de Arquitectura, regressaram com o projecto Plataforma Trafaria, um espaço para comunidades criativas inspirado pela diversidade cultural da região. Sofia regressaria já integrada também no colectivo Gato Morto para montar uma carpintaria que servisse de apoio logístico a um outro projecto apoiado pela Câmara Municipal de Almada na Quinta do Almaraz. Está, desde então, decidida a trabalhar num espaço onde à partida parece impossível actuar.

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“Os nossos projectos envolvem arquitectura, cultura e até acção social. Só para conseguir marcar uma reunião na Câmara com os três departamentos é preciso esperar meses”, desabafa. Sofia defende que é possível ter uma intervenção no espaço enquanto se espera pelo que vem a seguir. “Nós não queremos um edifício lindo, com vista para o Tejo, pintado de fresco. Não quero tudo perfeito. A gente quer trabalhar com o que há agora”, diz.

“Eles dizem, não se faz uma mesa antes de ter electricidade. Mas o que nós percebemos é que sim, podemos fazer a mesa antes da electricidade, porque vivendo ali vemos que há caminhos mais curtos para trazer vida para aquele lugar”, afirma. A permanência naquele espaço ainda é imprevisível. Daí que um dos pedidos ao colectivo francês tenha sido o da mutabilidade e mobilidade da estrutura do cinema: “Não temos garantia do tempo que vamos conseguir ficar aqui, por isso temos de estar preparados.” Sofia sonha também com a itinerância a nível nacional: “Quero levar o cinema a todas as vilas piscatórias do país.”

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