PGR: "razões" para não ter razão

A democracia é tão mais saudável quanto é mais amplo o leque de escolhas que oferece, sem ficar refém da sombra de homens (ou mulheres) providenciais.

Tendo em conta a ambiguidade da norma constitucional sobre a duração do mandato do procurador-geral da República  e a hipótese da sua renovação, Joana Marques Vidal (J.M.V.) poderia ter sido reconduzida por excelentes razões – a notável independência de que deu provas na actuação do Ministério Público face às pressões reais ou insidiosas de outros poderes –, apesar das reservas que suscitava – nomeadamente os ostensivos casos de violação do segredo de Justiça, capitalizados pelo sensacionalismo mediático e os chamados julgamentos na praça pública, que J.M.V. nunca foi capaz de contrariar. Só que se conjugaram dois factores opostos para que essa recondução não tivesse acontecido: por um lado, a pressão político-partidária das correntes da direita, do justiceirismo populista e do tal sensacionalismo mediático, querendo forçar a mão do primeiro-ministro e do Presidente da República; por outro, a recusa de Costa e Marcelo em se tornarem reféns dessa pressão, depois de um tempo em que deixaram arrastar a tomada de uma decisão. Precisamente, foi quando se deu quase por adquirido, através de media influentes, que J.M.V. sucederia a si mesma, que aconteceu a surpresa e Lucília Gago foi anunciada como nova procuradora-geral.

Convenhamos: o arrastamento do processo – depois de a ministra da Justiça ter deixado trair, há já alguns meses, a sua preferência pela hipótese de um mandato não renovável da procuradora – criou um ambiente propício às especulações, intrigas e suspeitas alimentadas nos bastidores políticos, exploradas pela imprensa e exacerbadas por alguns agentes do maniqueísmo panfletário. Ora, essa poluição da atmosfera política, proporcionada também por uma exasperante falta de transparência, colocou Costa e Marcelo perante a necessidade de recorrer a um xeque-mate que os libertasse da imposição de voltarem a escolher J.M.V.. Foi o que aconteceu, para além das intenções não confessadas de qualquer um deles. E ambos puderam, assim, até pela escolha de um nome largamente consensual e respeitado como Lucília Gago, manter o respeito pelas normas vigentes e não submetê-las a um critério de avaliação política (como teria acontecido se J.M.V. se mantivesse no cargo).

Independentemente dos segundos sentidos destas manobras tácticas, pode dizer-se que a democracia é tão mais saudável quanto é mais amplo o leque de escolhas que oferece, sem ficar refém da sombra de homens (ou mulheres) providenciais. Mas há uma razão suplementar e decisiva que acaba por justificar, a posteriori, a decisão de Costa e Marcelo. Foi o coro de reacções histéricas que, para além das discordâncias naturais, fundamentadas e serenas, se fizeram ouvir contra essa decisão, deixando cair a máscara do enviesamento político-partidário a que se chegou em Portugal e atingiu as raias do populismo mais frenético.

"Eles atreveram-se", "Noite das facas longas do regime", "Não me venham com tretas": expressões como estas, acompanhando as teorias da conspiração que associam estritamente o fim do mandato de J.M.V. a um propósito vingativo contra quem mandou investigar José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Vicente ou o Benfica, são sinais reveladores dessa histeria populista que pretende explorar os instintos mais baixos e o cinismo mais rudimentar da chamada populaça contra a normal sucessão institucional de uma respeitada procuradora por outra procuradora igualmente respeitada. São "razões" típicas de quem não tem razão e que acabam por voltar-se contra quem se serve delas para acicatar recalcamentos, frustrações e saudades de uma "pureza" autoritária que nos lavaria da mancha infamante de sermos todos corruptos ou cúmplices da corrupção.

  

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