O paraíso perdido de Sara Driver

Boom for Real pega na história de Jean-Michel Basquiat para o retratar nos seus tempos iniciais, quando ele era apenas uma coqueluche, bastante secreta.

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A realizadora com Jim Jarmusch numa das imagens do filme

Boom for Real é o primeiro filme de Sara Driver em cerca de 25 anos (não surgia como realizadora desde 1993 e When Pigs Fly), período ao longo do qual, sem deixar de colaborar em cinema (nomeadamente nalguns filmes de Jim Jarmusch), se dedicou essencialmente à sua carreira universitária. Boom for Real pega na história de Jean-Michel Basquiat para o retratar nos seus tempos iniciais, quando ele era apenas uma coqueluche, bastante secreta, do peculiar "ecossistema" artístico da baixa de Manhattan. O filme termina no momento em que Basquiat vende o seu primeiro quadro (ao célebre coleccionador Henry Geldzahler) — o que aconteceu depois, da sua morte prematura (em 1988, aos 27 anos) à transformação em peso pesado das casas de leilões de arte, a rivalizar em milhões de dólares com Bacon ou Picasso, já não é da conta de Boom for Real.

Que, sem deixar de ser sobre o artista, o utiliza sobretudo como pivot, espécie de porta giratória para o lugar e para a época, a conduzir o olhar de Sara Driver sobre aquele mundo da Nova Iorque entre os anos 70 e o princípio dos anos 80, quando a delapidada e degradada baixa de Manhattan foi ocupada e tonificada por dúzias de artistas e candidatos a artistas, das mais diversas disciplinas (e frequentemente fundindo as "disciplinas" umas nas outras) e das mais diversas origens, sociais, étnicas e etc. A "idade de ouro" do punk nova-iorquino, em sentido lato, e por maior que seja o grau de mitificação propiciado pela crescente distância temporal, algo de bastante aproximável a um paraíso perdido. No fim de contas, é isto que subjaz ao olhar de Sara — até porque também é a sua história: ela estava lá naquela altura, protagonista e espectadora, a trabalhar numa loja de fotocópias (onde era colega de Kim Gordon, futura integrante dos Sonic Youth) enquanto frequentava o curso de cinema da Universidade de Nova Iorque e colaborava nos primeiros filmes de Jim Jarmusch (seu namorado e companheiro de aventuras durante muitos, muitos anos). Esta proximidade biográfica, mas sobretudo sentimental (pese a distância que Driver toma: o seu filme é mais do que um emotion picture), sente-se em toda a duração de Boom for Real e é uma das suas forças, juntamente com a profusão de imagens de arquivo (das ruas, das discotecas e dos bares, dos graffiti). A combinação de uma coisa e outra injecta uma energia profundamente cativamente a Boom for Real, suficientemente para superar a relativa convencionalidade da sua estrutura.   

Para não deixar dúvidas, ela põe-se "lá", na história e no filme, desde o princípio. Um dos primeiros deponentes é Jarmusch, a contar uma história sobre Basquiat (que na altura não tinha mais de 16, 17 anos) vir oferecer flores a Sara, numa ocasião em que os dois namorados passeavam. "Já não sei dizer com certeza se foi esse o momento em que conheci Jean-Michel", conta Sara Driver ao Ípsilon, em conversa telefónica, "mas é possível que sim". Boom for Real também é a sua história, confirma, mas frisa que o epicentro e motivação para o filme vieram mesmo de Basquiat. "Alexis Adler, que foi brevemente namorada de Basquiat [e é uma das participantes no filme], tinha uma enorme colecção de material iconográfico sobre ele e com ele, e tudo isso estava em risco de desaparecer porque ela não tinha condições para o preservar". Pensou num filme como forma de guardar tudo aquilo num "arquivo audiovisual", se tudo viesse a desaparecer "ficava um registo, uma prova de que aquilo existiu" (este material, fotos, filmes em super 8, compõe uma boa parte da recolha iconográfica integrada na montagem de Boom for Real, e entretanto, diz Sara, foi posto a salvo). Há qualquer coisa de elegíaco nos fragmentos em super 8 com o próprio Basquiat, o seu olhar silencioso para a câmara a deixar a sensação de que ele que está a mirar os espectadores de agora, e não o contrário, assim como uma espécie de fantasma numa dimensão inatíngivel — "essa é uma ideia bonita em que não tinha pensado, mas... Jean-Michel era mesmo assim, de uma liberdade desconcertante, aparecia e desaparecia, estava agora e deixava de estar a seguir, mas ao mesmo estava em todo o lado, até porque não tinha morada fixa, todos os dias procurava a casa de alguém para dormir... Quando estávamos a rodar Permanent Vacation [primeiro filme de Jarmusch] ele vinha dormir para a rodagem, tínhamos que estar sempre a passar por cima dele".

Aquela época acabou cedo, as condições económicas que a propiciaram mudaram e trouxeram o seu fim: "aquela zona de Manhattan estava ao abandono, as casas não valiam nada, as ruas eram perigosas, cheias de tráfico de droga [que é focada num segmento do filme, como um "lado negro"], portanto era um sítio propício à ocupação por gente sem dinheiro e nada preocupada em ganhar dinheiro". Aliás, "essa é uma das razões por que quis fazer o filme: mostrar aos jovens de hoje, aos meus alunos, por exemplo, que já cresceram numa sociedade dominada por valores que nos eram estranhos, 'sucesso', ' rentablização', 'fama', 'dinheiro', aquilo que era objectivamente outro mundo".

E que era, acima de tudo, uma comunidade. Há um momento em que alguém diz que nos 70 em Nova Iorque "a Idade do Homem Branco já tinha acabado". É uma das poucas alturas em que o jargão contemporâneo é utilizado, mas até por isso reforça a sensação de que se estava ainda mais à frente: as identidades (étnicas, de género, de orientação sexual) não contavam para nada ou contavam para pouco, os graffiters hispânicos misturavam-se com os graffiters negros, o hip hop casava com o punk rock. Como se todas as identidades ardessem numa grande fogueira para criar outra coisa — "outra identidade", diz Sara, "e é verdade, sim, as pessoas inventavam-se, ninguém estava condicionado pelo que era, o único limite era a imaginação do que podia ser, e que aquilo que todos sentíamos com muita força era a sensação de pertencermos a uma comunidade, em que toda a gente ajudava toda a gente, e toda a gente se misturava com toda a gente".

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