2018 foi o ano da Flor, mas irá o júri de Locarno deixar-se seduzir por ela?

Catorze horas de projecção para um filme que só pode ser visto em sala – para o bem e para o mal, a 71.ª edição do festival fica marcada pelo filme do argentino Mariano Llinás.

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La Flor, definitivamente "a experiência" de Locarno 2018 DR
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La Flor, do argentino Mariano Llinás, divide-se em seis histórias, protagonizadas pelas mesmas quatro actrizes DR
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La Flor, do argentino Mariano Llinás, divide-se em seis histórias, protagonizadas pelas mesmas quatro actrizes DR

Há múmias, música pimba, exorcistas, cientistas, paixões, traições, escorpiões e outros plurais acabados em “ões” em La Flor, e ainda só falamos das primeiras quatro das suas 14-quase-15 horas de duração. E também há quatro actrizes a curtirem que nem castores.

Antes disso, contudo: é mais ou menos unânime que Carlo Chatrian se despede da direcção artística de Locarno (para ir assumir o mesmo cargo na Berlinale) com uma colheita fraquita. No Concurso Internacional houve Hotel by the River, de Hong Sangsoo, M, de Yolande Zauberman, Ray & Liz, de Richard Billingham, e, num patamar inferior, Diane, de Kent Jones, e A Land Imagined, de Yeo Siew Hua. Houve também o óvni inclassificável de Wintermärchen, do alemão Jan Bonny, história (inspirada em factos verídicos) de uma pequena célula terrorista de simpatias xenófobas. Becky, Tommi e Micky são os piores terroristas do mundo, hippies da direita caviar a brincar com coisas muito sérias e que a imensa confusão que lhes vai nas cabeças leva a sonharem com a celebridade criminosa na esteira de Bonnie e Clyde. Sujo, feio, cruel, brutal, violento, desconfortável gémeo negro do supracitado peace & love hippie dos anos 1960, Wintermärchen não deixa ninguém incólume, não pede desculpa por nada, está aqui para nos sacudir do torpor e nos pôr a pensar. E mesmo que caia por vezes (talvez de mais) no gratuito, Bonny obriga-nos a olhar de frente para aquilo que preferimos varrer para debaixo do tapete mas já não podemos esconder.

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Wintermärchen, do alemão Jan Bonny: um gémeo negro de Bonnie e Clyde DR

A competição de “novos autores” Cineasti del Presente também não esteve em alta – houve, ainda assim, Temporada, de André Novais Oliveira, e, sobretudo, Sophia Antipolis, de Virgil Vernier. E Fausto, da canadiana Andrea Bussmann, cúmplice habitual de Nicolás Pereda, recolha de contos fantásticos passados de boca em boca (ou inventados pela realizadora?), colados a um sortilégio audiovisual de imagens e ambientes que formam um sonho acordado nascido das longas noites de férias à beira-mar passadas a ouvir os mitos e as lendas locais.

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Fausto, de Andrea Bussman DR

Esse encavalitar de histórias contadas à lareira dá-nos a introdução perfeita para falar daquele que, independentemente dos gostos, é "o" filme que marca Locarno 2018. São seis histórias. Quatro começam mas não acabam: uma série B à antiga, um musical com um toque de mistério, um filme de espiões e uma coisa que não se sabe muito bem o que é. A quinta, inspirada por um velho filme francês, é uma história que começa e acaba. A sexta é a história de quatro mulheres que atravessam o deserto tendo escapado aos índios. Todas as histórias são interpretadas pelas mesmas quatro actrizes principais. O todo esteve dez anos em produção e, na sua versão final, está dividido em três partes, respectivamente com três horas e meia, seis horas e cinco horas. Ao apresentar a primeira parte, a produtora Laura Citarella e o realizador Mariano Llinás agradeceram ao festival ter escolhido um filme “muito difícil de programar”. E que, diríamos nós, é igualmente difícil de ver, apesar de ser, até, muito acessível ao espectador médio.

La Flor é obra complicada porque Llinás, que tem como mote filmar fora dos cânones tradicionais, não quer que o filme seja visto fora de uma sala. Não há cópias de visionamento prévio online, DVD, links, cartazes, material de imprensa; há apenas La Flor em sala e se não se viu, paciência. O produtor e executivo Ted Hope falava-nos em Locarno da ausência, nestes dias em que tudo se encontra on-line, de “santos Graais”, daqueles filmes que poucos viram mas muitos almejam ver, daquelas raridades que passam de boca em boca como segredos que só se partilham com os iniciados. La Flor é um desses santos Graais: uma raridade cuidadosamente guardada, um exame cinéfilo que só quem vir na íntegra passará com distinção.

Em teoria, tudo isto é muito bonito. Na prática, é enfurecedoramente frustrante: La Flor passou apenas duas vezes em Locarno, uma na “versão oficial” em três partes, e a outra numa divisão em oito “actos”, com a loucura dos calendários festivaleiros a impossibilitar a visão integral do projecto, como se a única maneira de ver o todo fosse vir ao festival só para o ver. E, contudo, algo nos diz que era precisamente isso que Llinás queria: espicaçar a curiosidade, deixar água na boca, criar mais mito. Quantos menos o puderem ver na íntegra, melhor; aqueles que só conseguiram ver partes (é o nosso caso) vão ter vontade de ver o resto, espalhar a notícia. La Flor é, mais do que apenas um filme, toda a envolvência que o rodeia.

Estamos a pensar, forçosamente, nas experiências mais alucinantes de Jacques Rivette (como as 12 horas de Out 1: Noli me Tangere) mas também nos jogos narrativos de Raul Ruiz – embora, nas notas de imprensa, Llinás coloque o “momento eureka” de La Flor em Stromboli, de Rossellini, e no modo como o filme usava o confronto de uma glamorosa Ingrid Bergman com a realidade da ilha vulcânica para a levar a transcender o simples acto de representar. Foi isso que Llinás quis dar às suas quatro actrizes, Elisa Carricajo, Laura Paredes, Pilar Gamboa e Valeria Correa: um filme que lhes possibilitasse espraiarem o seu talento e transformarem-se a seu bel prazer, revelando no processo a sua verdadeira natureza.

Do que vimos, parece-nos que cada um dos episódios de La Flor sobreviveria isoladamente, mas é na sua justaposição, que remete para os velhos “programas duplos” do cinema de bairro, que Llinás ganha a aposta: é um filme-caleidoscópio de formas e géneros que esconde um enorme amor ao cinema, um desejo de reencontrar o prazer puro de contar histórias ao espectador e com o espectador. E que mal tem se elas não acabarem? O que interessa é a experiência de as viver.

La Flor é um filme de festival que (não) quer ser um filme de festival. O júri presidido por Jia Zhang-ke – que atribuirá os seus galardões ao princípio da tarde de sábado – poderá ou não deixar-se seduzir por isso; mas, por onde se quiser ver, Locarno 2018 foi o ano de La Flor.

O PÚBLICO esteve em Locarno a convite do Festival de Locarno

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