Não podemos deixar que haja portugueses “pregados ao chão”

O geógrafo Rio Fernandes fala da mobilidade como factor de justiça. E pede mais atenção dos decisores a quem anda a pé.

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Nelson Garrido

Numa semana em que se organizaram várias iniciativas dedicadas ao ambiente e à mobilidade, o investigador José Alberto Rio Fernandes, presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, esteve no Mobitrans, no Porto, com uma intervenção marcada por alguns avisos à navegação. Entrevista com um académico mais interessado nas pessoas do que nas tecnologias, e no conforto urbano do que na competitividade entre cidades.

Disse na sua apresentação que o crescimento económico aumenta na proximidade das cidades. Perante esse dado, e num país como Portugal, que resposta vamos dar: aproximar as pessoas da grande cidade, ou tentar replicar essa fórmula em espaços urbanos multipolares?
Depende muito do ponto de partida. Se estamos num país multipolar com muitas pequenas cidades, há que conviver com isso e adequar o modelo a essa perspectiva. Face à situação portuguesa, o que os dados nos indicam é que valeria a pena apostar nos espaços de maior dimensão e na sua envolvente situada a 45 minutos, uma hora de distância. Como exemplo, no caso do Porto estamos a falar de Viana do Castelo para norte, de Aveiro, a sul, ou de vila Real, para leste. Esta será a área onde, de acordo com a OCDE, a economia mais cresce. E percebe-se que isto tem muito que ver com a proximidade aos nós de circulação e aos aeroportos. Porto e Lisboa são os principais pólos de uma realidade administrativa que não existe. Trata-se de duas regiões urbanas onde vivem cerca de seis milhões de habitantes, três milhões entre Viana do Castelo e Aveiro, outros três milhões entre Leiria e Setúbal. Estes são os territórios críticos, do ponto de vista do futuro do país. E isto significa duas coisas: que temos de pensar o país em função destas duas regiões, e não apenas de uma, o que tem sido um problema. E temos de encontrar estratégias territoriais para cada uma delas, que envolvam todas as pessoas, independentemente do lugar onde moram. Isto está a acontecer de alguma forma, mas por via de lógicas voluntaristas, levadas a cabo pelos empresários — que percebem onde está a mão-de-obra, as acessibilidades, as ligações aos aeroportos, etc — mais do que por qualquer opção política.

Como geógrafo parece-lhe que o novo Programa Nacional de Políticas do Ordenamento do Território (PNPOT) responde a esse desafio?
O PNPOT tem um problema comum a estes documentos técnicos que pretendem ser políticos: vai muito ao fundo de demasiadas questões. E não fica completamente claro quais são as grandes apostas. Eu aqui estou a referir uma aposta que é minha enquanto geógrafo. E sobre isso queria sublinhar um aspecto. Isto não significa que devemos desistir do território de baixa densidade. Ele tem é de ser tratado de uma outra maneira. E não numa lógica da caridade. É preciso encontrar respostas diferentes, na saúde, na educação, na mobilidade, nas comunicações, para estas zonas. Estamos a falar de Portugal e de portugueses que, independentemente do sítio onde moram, têm direitos. Isto coloca desafios na área de mobilidade. Em muitas destas zonas há pessoas pregadas ao chão.

É outra faceta da interioridade?
Eu nunca vi Madrid queixar-se de ser do interior. Nem Munique. No interior é possível ter cidades altamente competitivas e com elevada qualidade de vida.  

Mas há essa exclusão da falta de mobilidade.
Sim. Há um conceito muito interessante, de um geógrafo americano, Edward Soja, que é o de justiça espacial. Ele defendeu muito a ideia do território nesta lógica social, fazendo notar como ele introduz injustiça. Alguém que mora numa aldeia e que não tenha nem transportes públicos, nem carro está quase condenado a não ter acesso a bens e serviços. É extremamente complicado. Claro que há novas formas de chegar a essas pessoas, mas é preciso que se desenvolvam essas alternativas. Da mesma forma é injusto que alguém viva num quarto andar de uma torre de habitação social sem elevador. Essa pessoa está completamente excluída da cidade. Eu diria que este tipo de preocupações mais finas, mais sociais, são as do século XXI. Já não é a auto-estrada, a infra-estrutura, ainda que haja sítios onde falta água e saneamento (o que tem de ser resolvido, claro). Hoje é muito mais importante fazer chegar a toda a gente qualidade de vida. E aí é preciso todo o cuidado para que o espaço não seja um condicionador da vida. E está a sê-lo. Hoje há um factor de injustiça, de desigualdade, que é introduzido pelo lugar onde se mora. 

Um mapa distorcido de distâncias/tempo, em Portugal, cruzado com faixas etárias, poderia dar o desenho de um país enorme.
Sim, e distorcido não só pela idade, mas pelo poder de compra. Estar a cem quilómetros de distância pode significar uma hora, para quem puder comprar um bilhete de avião. Mas se não for esse o caso... fazer tratamento oncológico continuado fica mais caro a quem esteja afastado dos centros onde eles se realizam, porque implica, muitas vezes, custos com alojamento. Há aqui de facto distorções do mapa. Falamos de um país onde parece que estamos todos mais próximos, por causa das auto-estradas, mas podemos ter aumentado as diferenças, em relação àqueles que não têm automóvel ou dinheiro para a gasolina e para as portagens. Estas pessoas estão extremamente condicionadas. Em muitas aldeias há muita gente dependente do táxi.

Montamos um país a pensar que todos seríamos proprietários de um automóvel?
Ao longo dos anos 80 e 90 houve a ideia de que teríamos um crescimento económico contínuo e que teríamos de planear o país assim, desenhando auto-estradas para 20 ou 30 anos. Toda a gente iria ter um automóvel, jogar na bolsa, nessa ideia de futuro cheio de promessas. Esta crise mais recente, que em Portugal foi particularmente forte, obrigou-nos a repensar o modelo, em função de um uso eficiente dos recursos. É preciso gastar bem. E como é que se mede o efeito? Pelo bem-estar das pessoas. E, se formos a ver, gastou-se muito dinheiro sem que isso tenha trazido mais satisfação com a vida, mais felicidade. É preciso pensar a mobilidade a partir do que as pessoas querem. E procurar responder sobretudo aos mais frágeis. O PNPOT reforça muito esta ideia da coesão social, promovendo a diferença, sem esquecer ninguém. Infelizmente, o que eu noto é que não há propriamente um tomador disso. 

Alguém que tome esse desígnio em mãos e o faça verter pelas políticas de todos os ministérios?
Sim. Os ministérios são muitos. E como é que eles falam entre si, como se articulam? E esse problema não se coloca apenas a nível nacional. Dou-lhe um exemplo. Como é que se responde a uma pessoa que dorme em Gondomar, trabalha no Porto e vai às compras em Matosinhos? Alguém responde por isto? Temos três autarcas, três políticas diferentes. A área metropolitana, do ponto de vista institucional, é muito débil e demasiado grande, não dando expressão, e resposta, à cidade de um milhão de habitantes em volta do Porto, o que origina uma perda de eficiência. 

Disse na sua apresentação que está a ser dada demasiada importância aos factores de competitividade dos territórios, e que isso prejudica a atenção que deveria ser dada ao combate às desigualdades e à promoção do conforto. O modelo de Richard Florida está a prejudicar-nos?
Richard Florida teve há duas décadas muita influência com a ideia das cidades criativas, da competitividade e da inovação, centradas na busca dos três “t” — talento, tecnologia e tolerância. A tolerância é óptima. Em relação ao resto, nada tenho contra o investimento em tecnologias, que nos trouxe ao conceito de smart cities, nem contra a atracção dos talentosos, mas isto foi trabalhado muito em cima da competitividade entre cidades, da ideia de que todos nós temos de ser talentosos, todos temos de ser empreendedores... E não é assim que lá chegamos. O próprio Richard Florida reconheceu recentemente que se todos forem competitivos há uns que ficam para trás. E quem é que ajuda os que ficam para trás? Há aqui algum exagero. Isto pode ser uma orientação de futuro, mas não pode ser “a” orientação — sob pena de nos dividirmos entre vencedores e perdedores, a soma dos quais pode dar até um valor negativo. O urbanista dinamarquês Jan Gehl [autor, entre outros, do livro Cidades para Pessoas], aborda isto de forma diferente, menos centrado no marketing e mais na preocupação com as pequenas coisas. A resposta é muito no sentido do conforto e do bem-estar. É isso o essencial. 

E o conforto, essa capacidade de gerar soluções para cidadãos com diferentes necessidades, não acaba por ser um factor de competitividade, e positivo para o marketing territorial?
Sim. Mas aqui não se trata tanto de dizer ao mundo que a nossa cidade é melhor do que a dos outros. Trata-se mais de dizer: a nossa cidade é boa. Porque é que não fazem parecido? E, ponto dois: esta não é uma competição por gente, por investimento, nem por turistas. Aliás, esta procura pelo bem-estar é muitas vezes adversa do turismo, ou do seu excesso.

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