Como um elefante numa loja de porcelanas

Death Wish é um filme duma inconsciência geral, à beira da acefalia.

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Death Wish: Bruce Willis a macaquear, com os dedos, o gesto de quem dispara uma pistola
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Sobretudo nos EUA, tem sido muito criticado o “timing” deste remake do célebre Death Wish, o filme que em 1974, sob a direcção de Michael Winner, deu início à série que estabeleceu a imagem definitiva do velho Charles Bronson. No meio dos relatos caóticos que nos chegam da América, armas por todo lado e massacres quase todas as semanas, compreende-se a estupefacção: o Death Wish de Eli Roth, na sua abordagem do “vigilantismo”, da justiça por conta própria, da profusão descontrolada de armas de fogo, tem a subtileza do proverbial elefante na loja de porcelanas. Mas para a metáfora fazer pleno sentido, e ser justa quer para o elefante quer para Eli Roth, é preciso não esquecer que o elefante não sabe, não tem noção, do que são porcelanas. Essa falta de consciência atenua a sua responsabilidade, de uma forma que é impossível no caso de Roth (que, segundo as informações disponíveis, é um ser humano, não um paquiderme): o seu filme parece não fazer a mais pequena ideia das questões em que toca, e muito menos revelar alguma capacidade para as enquadrar de modo minimamente crítico. Houve um crítico americano que escreveu que Death Wish conseguia ser insultuoso para o lobby das armas e para os que se lhe opõem — e é difícil desmenti-lo, sobretudo se pensarmos que a cena que mais directamente foca esse assunto (a visita de Bruce Willis ao armeiro) é resolvida com uma piadinha sobre a facilidade de adquirir armas, e já está, não se fala nem se pensa mais no assunto.

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Dirão: mas isto, filmar personagens que buscam, à margem da lei, uma ideia de justiça perigosamente confundida com uma vingança pessoal, é uma coisa que Clint Eastwood, por exemplo, fez incontáveis vezes, dos anos 70 (no tempo do Dirty Harry) ao século XXI (o “Gran Torino”). Ora, precisamente, o último plano de Death Wish (Willis a macaquear, com os dedos, o gesto de quem dispara uma pistola), parece ser uma remissão para Eastwood, que já se filmou a fazer esse gesto. Mas ficamos, de facto, no puro macaquear. E entendamo-nos, nada disto tem a ver com as ideias políticas do espectador, mas na sua suspensão face à lógica dramática que é exposta nos filmes: Clint era capaz de sugerir o bloqueio e a inoperância da lei e da justiça de uma forma tal que conferia um sentido dramático, palpável e entendível, às reacções das personagens, muito para além do juízo de carácter político que houvesse a fazer sobre essas reacções. Eli Roth é incapaz dessa sugestão: a investigação policial demora a encontrar os meliantes que mataram a mulher de Willis e lhe mandaram a filha para o hospital, e é só isso, ele resolve apressar as coisas, e transformar-se do dia para a noite numa espécie de super-herói. Nenhuma tensão, nenhuma angústia, nenhuma dúvida — nem sequer a dor, o luto, enquanto espigões para uma reacção extrema, têm qualquer espécie de espessura.

E sobretudo, falhando isso, nenhuma implicação do espectador. Ou sim, mas apenas o alegre estímulo do seu suposto sadismo. Uma das cenas da investigação por conta própria de Willis é, com a ajuda de um macaco de levantar automóveis, “torture porn” no seu mais básico, quer dizer, o espectador posto no lugar do torturador a gozar o sadismo. Roth, no fundo, só quer isto, seguir o roteirozinho sádico que lhe é habitual, qual “inglorious basterd” de meia tijela (ele era um deles, no filme de Tarantino), embrulhado no conforto de uma história de vingança sem nenhum matiz. Uma puerilidade. A prova? Que Bruce Willis, no seu “uniforme” de vingador (um capuz), faça lembrar tanto a Morte do “Sétimo Selo” de Bergman. Esperamos a todo o momento que o filme, de alguma forma, reconheça isso com as devidas consequências — e que diferença faria se Roth filmasse o seu herói como a Morte, a Morte “saída à rua”. Mas é evidente que esperamos em vão, isso nunca acontece, “Death Wish” é um filme duma inconsciência geral, à beira da acefalia.

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