Enquanto as bombas caem

Em Na Síria estamos na fronteira, turva e indefinida, entre uma vontade genuína de chamar a atenção para uma situação dramática e um oportunismo perigosamente sensacionalista.

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É o típico “filme-assunto-do-dia”, feito a pensar numa vida como acessório de “sessões com debate”
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Um filme como Na Síria suscita sentimentos – e sobretudo pensamentos – contraditórios. Exactamente da mesma maneira, e é exemplo que vem ao espírito durante o visionamento, que a quantidade de filmes que se fez em Sarajevo ou noutras partes da ex-Jugoslávia durante a guerra civil dos anos 90. Ninguém precisa, supomos, de uma introdução quanto ao que se passa na Síria, país que ainda esta semana voltou em força às manchetes internacionais. Talvez se precise, isso sim, de um pouco mais de “empatia”, ou pelo menos de compaixão, para com aquilo que é hoje a vida de muitos sírios. Em grande parte, o filme do belga Philippe van Leeuw entra por aí: relata um dia na vida de uma família síria, encurralada no seu apartamento de Damasco enquanto lá fora se ouvem ruídos de explosões de bombas e de tiros de snipers. É uma situação básica, quase abstracta, dum quotidiano de guerra, e uma história que podia ser contada em inúmeros outros contextos. Mas todo o sentido do filme é ser “na Síria”, e isso até é logo dado no título, com uma porção de exibicionismo algo desagradável – até porque o filme não foi feito “na Síria”, mas no Líbano (contando, no elenco, com alguns actores, amadores ou profissionais, que serão realmente refugiados sírios).

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Há “suspensões da descrença” e há “suspensões da descrença”, e esta reivindicação de autenticidade tem, portanto, o seu quê de acto falhado, ou de sua supressão. Diríamos ainda que não demora muito a que van Leeuw force, ou vá lá, facilite, a “identificação” entre a família protagonista e um “espectador comum” ocidental: aquela panorâmica que se segue à introdução (introdução essa, com o plano fixo do pátio arruinado e umas quantas figuras à mercê dos disparos dos “snipers”, bastante eficaz), varrendo o espaço da sala de estar – muito “normal” na decoração, incluindo as estantes pejadas de livros – não tem outro objectivo que não seja estabelecer essa identificação, em termos culturais e até em termos de classe. É este tipo de calculismo, de perfeita medida entre causas e efeitos gerados no espectador, que reforça a ambivalência perante todo o projecto: em Na Síria estamos naquela fronteira, turva e indefinida, entre uma vontade genuína de chamar a atenção para uma situação dramática e um oportunismo perigosamente sensacionalista. É a mistura das duas coisas que faz viver o filme, temperada por conflitos ou dilemas de ordem moral desenhados a regra e esquadro (por exemplo uma cena de violação, e tudo o que podia ter sido feito, ou não podia ter sido feito, para a impedir). Em socorro do filme vem a consistência, apesar de tudo bastante seca e com a retórica mantida a um mínimo, com que esse lado esquemático da situação e das personagens é apresentado, bem corporizado pela “mãe coragem” interpretada por Hiam Abbass (o nome mais conhecido do elenco), e a coerência com que van Leeuw trata o huis clos do reduto doméstico, espaço oprimido mas, ainda assim, e por comparação com um exterior tratado com ameaça permanente, “seguro”. Esta competência, que também é um sinal de pudor, deixa o filme bem longe de ser a pura exploração de uma indignidade oportunista sem, contudo, completamente a remover. Em todo o caso, é o típico “filme-assunto-do-dia”, feito a pensar numa vida como acessório de “sessões com debate”.

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