Rios estão “bloqueados” por açudes e barragens obsoletas que impedem as migrações dos peixes

Um levantamento publicado em 2016 identificou em Portugal continental mais de 7 mil açudes e barragens dispersas pela rede hidrográfica. Associação ambientalista Zero diz que Governo não está a cumprir o que prometeu quanto à remoção das que estão obsoletas.

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Sérgio Azenha

Em Portugal continental há milhares de pequenos açudes, na sua maioria estruturas muito antigas, obsoletas e sem utilização, que faziam parte, na sua maioria, de concessões atribuídas a moleiros. Destas infra-estruturas hidráulicas restam hoje apenas destroços ou os muros de retenção da água que movia a engrenagem da roda horizontal ou rodízio das azenhas. A sua remoção apresenta-se como a opção mais pertinente não só do ponto de vista ambiental mas também económico. O Governo comprometeu-se a demolir estas infra-estruturas sem qualquer função e a repor habitats aquáticos e ribeirinhos, mas a Zero - Associação Sistema Terrestre Sustentável, diz que o projecto "está na gaveta há mais de um ano”.

Há ainda um acumular de situações de gestão das linhas de água para rega, controle de cheias, utilização para a indústria e produção de energia e até para a prática de actividades lúdicas, que vem comprovar como a rede hidrográfica nacional sofre de uma segmentação muito grande, com a instalação de açudes e barragens.

O primeiro passo no sentido de uma mais eficaz racionalização no uso das linhas de água foi dado em Outubro, quando o secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins, esteve no Baixo Alentejo para assistir ao início da demolição das barragens da Misericórdia (Beja) e da Sardinha (Serpa). O objectivo, assumiu o governante na altura, é garantir que as infra-estruturas hidráulicas que estão obsoletas "não vão continuar, de alguma maneira, a perturbar o escoamento natural da nossa rede hidrográfica" e a continuidade fluvial do ponto de vista da gestão do recurso água.

O levantamento efectuado no âmbito da Revisão do Plano Nacional de Barragens, publicado em Abril de 2016, identificou em Portugal continental mais de 7 mil açudes e barragens dispersas pela rede hidrográfica de norte a sul do país. E neste conjunto de equipamentos hidráulicos "há um significativo número de barragens que atingiram a sua vida útil e que hoje, do ponto de vista social e ambiental, já não justificam a sua existência" explicou Carlos Martins. O governante acrescentou que já tinham sido identificados cinco açudes e três barragens que, por “não terem qualquer relevância socioeconómica”, iriam ser demolidas, destacando o propósito do programa do Governo: repor as características dos sistemas fluviais, dos habitats aquáticos e ribeirinhos.

Decorrido ano e meio do compromisso assumido em Beja pelo governante, Paulo Lucas, dirigente da Zero, sublinhou ao PÚBLICO que, afinal, nada avançou. “A promessa de remoção de infra-estruturas hidráulicas obsoletas existentes nos rios está na gaveta, há mais de um ano.” O ambientalista explica que teve acesso ao relatório elaborado por um grupo de trabalho “há largos meses e as propostas que nele constam continuam sem fazer parte das prioridades de intervenção no Ministério do Ambiente”.

Identificadas nove barragens

O documento esclarece que “foram identificadas nove barragens e mais de 23 açudes em condições de serem removidos a partir do final do 1.º semestre de 2019”, um número que supera as oito infra-estruturas anunciadas na Revisão do Plano Nacional de Barragens. Mesmo assim Paulo Lucas considera que se “deveria ter ido muito mais longe” na identificação e avaliação das situações.

Na resposta enviada ao PÚBLICO pelo ministério é referido que o relatório preliminar elaborado pelo grupo de trabalho, instituído por despacho ministerial, “permitiu acompanhar e avançar com a operacionalização de trabalhos, nomeadamente, na zona da Administração da Região Hidrográfica do Alentejo”. Assim, além das barragens da Misericórdia e da Sardinha a tutela adianta que a barragem do Peneireiro já foi “totalmente demolida” e está apresentado o pedido de demolição da barragem da Herdade da Cigana (Beja).

Reagindo às críticas formuladas pela ZERO quando acusa o ministério de ter colocado “na gaveta, há mais de um ano” o programa de Identificação, Estudo e Planeamento da Remoção de Infra-estruturas Hidráulicas Obsoletas, a tutela justifica: "o período de três anos de seca e um ano de 2017 particularmente difícil não permitiram a priorização pretendida por parte do ministério, continuando todavia determinado a prosseguir com este objectivo que considera da maior importância”.

Actualmente, estão classificadas 256 grandes barragens com mais de 15 metros de altura e 1 hectómetro cúbico de armazenamento. A Agência Portuguesa do Ambiente refere que cerca de 22% destes equipamentos têm entre 50 e 75 anos de idade.

O inventário das pequenas barragens é menos preciso. Pelo menos cerca de 450 destes equipamentos têm dimensões intermédias, com capacidade de albufeira variando entre 100 mil metros cúbicos e 1 hectómetro cúbico. As infra-estruturas de menor dimensão (açudes e represas), são muito mais numerosas e não estão quantificadas.

Realidade "caótica"

Pedro Raposo de Almeida, professor de biologia na Universidade de Évora e especialista em ecologia aquática, refere que a maior parte deste tipo de estruturas “é muito antiga e, na maioria das situações, nem se conhece o dono”. O investigador diz que se está perante uma realidade que, em muitas linhas de água, “é caótica”. Formam barreiras em contínuo, que “impedem a circulação de peixes até ao seu habitat natural”. Mas, ao mesmo tempo, reconhece, “já não conseguimos viver sem barragens”.

Superar boa parte das situações “não é um processo simples, admite. “Há locais onde as comunidades ribeirinhas se afeiçoaram às toalhas de água” salienta Raposo de Almeida lembrando a importância lúdica deste tipo de equipamentos aquáticos. A alternativa, sugere, passa pela instalação de comportas que serão retiradas quando se verifica a circulação das espécies.

Noutros casos, mais complexos, a instalação de uma passagem de peixes é a solução técnica, como a que foi instalada na Ponte-açude do rio Mondego, em Coimbra, e que custou 3,5 milhões de euros. O especialista em ecologia aquática reconhece que o encargo é elevado, mas realça o peso económico que deriva da pesca de peixes migradores como o sável, a lampreia marinha, a savelha, a tainha, a enguia europeia ou a truta marisca. “O rio Mondego sempre foi importante para os peixes migradores”, sublinha Pedro Raposo, realçando o impacto que as obras hidráulicas, realizadas nos anos 80 do século passado para a regularização do troço inferior do rio, tiveram na perda de habitat provocada pela construção de açudes.

Aquilo que hoje se observa a jusante de Coimbra, sensivelmente num troço com 15 quilómetros, “é completamente artificial e está completamente fechado com comportas desde a execução dos equipamentos hidráulicos, que tem a ver com a utilização da água para fins agrícolas e também o controlo de cheias” destaca o docente.

Mas apesar de ter ocorrido uma alteração tão profunda no traçado fluvial do Mondego, não só com açudes mas com barragens de grandes dimensões nos seus afluentes, “poderia pensar-se que estas espécies extremamente sensíveis do ponto de vista ecológico, poderiam desaparecer do rio” observa Pedro Raposo. O que é um facto é que o rio e o seu ecossistema e essas populações “mantiveram-se até à reabilitação que foi feita”, acentua.

Uma passagem de peixes

A observação que a equipa de investigadores da Universidade de Évora tem feito, desde o final da década de 90, sobre os peixes migradores ou diádromos - espécies que ao longo da sua vida utilizam o ecossistema marítimo para se alimentar e o fluvial para se reproduzir - incutiu a necessidade de encontrar uma solução para superar um obstáculo intransponível em que se tinha transformado, sobretudo, a Ponte-açude de Coimbra. E, neste momento, está a funcionar uma passagem de peixes com 120 metros de comprimento, uma profundidade de 2 metros e uma largura de 3 metros. “É um pequeno rio ao lado do Mondego com um caudal de cerca de dois metros cúbicos por segundo."

Com a entrada em funcionamento desta passagem dos peixes, em 2011, os resultados obtidos durante os primeiros anos de monitorização demonstram que houve um aumento significativo da área disponível para espécies migradoras no Rio Mondego. Em 2013, transpuseram a passagem 1,4 milhões peixes (cerca de 900.000 no sentido montante), várias espécies autóctones, como a lampreia-marinha, o sável, a savelha, a enguia-europeia, truta-de-rio, barbo, boga e o muge (tainha).

Durante a época de reprodução de 2013, quase 8500 lampreias-marinhas usaram a passagem, número que em 2014 aumentou para 22.000 exemplares, uma das espécies a par do sável e da enguia que mais aumentou a montante da Ponte-açude de Coimbra, “fenómeno que se reflectiu na crescente procura de licenças de pesca profissional” no Médio Mondego, assinalou Pedro Raposo.

O investimento de 3,5 milhões de euros, realizado na passagem de peixes acentuou a importância da lampreia, do sável e da enguia nas economias locais e, de tal forma, que ao fim de algum tempo “este valor fica amortizado” vinca o investigador. A experiência que está a ser colhida no âmbito do projecto Reabilitação dos Habitats de Peixes Diádromos na Bacia Hidrográfica do Mondego que está a ser dinamizado pela Universidade de Évora, já está a ser solicitada para ter continuidade noutras localidades ribeirinhas da bacia do Mondego.

Hoje são os próprios pescadores, que “inicialmente não escondiam a sua irritação e desconfiança em relação ao projecto”, que o aprovam, depois de terem confirmado que têm acesso ao pescado como já não tinham desde que os açudes do Mondego passaram a impedir a livre circulação dos peixes diádromos entre as áreas de reprodução e alimentação.

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