Da Blaxploitation a Black Panther, uma história actualizada

Na década de 1970, vários filmes de baixo orçamento deram, pela primeira vez, total protagonismo no grande ecrã à comunidade afro-americana. Neles, a música fez parte da história. Assim é também com o milionário Black Panther.

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Uma indústria em crise descobria que, com orçamentos reduzidos, conseguia realizar lucros consideráveis com filmes dirigidos à comunidade afro-americana: Shaft (1971), de Gordon Parks

Black Panther, antecipado nos Estados Unidos como um marco cultural, como acontecimento inescapável na América polarizada de Trump e do "Black Lives Matter”, em tumulto com questões de género e raciais. Black Panther e o seu universo ficcional de Wakanda, metáfora para uma África intocada pelo flagelo da colonização. Black Panther, filme idealizado, realizado e protagonizado pela comunidade afro-americana. O filme e a música: a antecipação estendendo-se aos sons que acompanharão as imagens, principalmente desde que foi noticiado que estes seriam criados e supervisionados por Kendrick Lamar, a estrela mais cintilante do hip hop da actualidade, figura de absoluto destaque no panorama musical contemporâneo e criador que é voz activa e comprometida no diálogo social em curso. É uma história nova? É história a acontecer (outra vez). Recuemos a 1972.

Um mês e meio antes da estreia, o single Freddie’s dead chegou às lojas e às rádios. Um mês antes, já (parte) da história era contada, voz da rua cantando sobre a voz de Curtis Mayfield: “Everybody’s misused him / Ripped him up and abused him / Another junkie plan / Pushing dope for the man”. Quando chegou a antestreia, a comunidade de VIPs da indústria cinematográfica teve uma surpresa. "Façam o favor de convidar a indústria e os media", disseram aos responsáveis da Warner Brothers, o gigante responsável pela distribuição, "mas este é um filme das ruas e as ruas também serão convidadas".

Quando estreou Superfly, um dos mais icónicos filmes da Blaxploitation, nome atribuído aos filmes de baixo orçamento que, na década de 1970, na sequência da luta pelos Direitos Civis, colocaram pela primeira vez a comunidade afro-americana como protagonista, estavam lá as figuras públicas e os executivos habituais, mas estavam também, como recordava em 2002 à revista Mojo Marv Heiman, braço-direito de Curtis Mayfield na sua editora, a Curtom, empregados de bar, barbeiros, esteticistas. Estavam barões do submundo a sair dos seus carros reluzentes para a passadeira vermelha, sobretudo de pele exuberante vestido e a brilhar e rodeados pela sua “equipa” de dealers e de amantes. “Hollywood nunca vira uma estreia assim, posso garantir”, recordava Heiman.

Superfly, realizador por Gordon Parks Jr., tornar-se-ia um dos fenómenos do ano nos Estados Unidos, multiplicando largamente o parco investimento na produção e rodagem e juntando mais uma personagem, Priest, o dealer de cocaína que planeia um último grande golpe antes de se reformar, a uma galeria onde já estava o Sweetback interpretado por Melvin Van Peebles em Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), considerado o filme que deu o arranque à Blaxploitation (Van Peebles também realizou e compôs música para a banda-sonora), ou o John Shaft de Shaft, também estreado em 1971 e realizado por Gordon Parks, pai do realizador de Superfly - Foxy Brown, encarnada por um dois maiores ícones da Blaxploitation, Pam Grier, actriz que Quentin Tarantino recuperaria em Jackie Brown, não tardaria a aparecer.

"Um jogo podre"

Representando um curto período em que, por uma conjugação de interesses comerciais – uma indústria cinematográfica em crise descobria que, com orçamentos reduzidos, conseguia realizar lucros consideráveis com filmes dirigidos à comunidade afro-americana – e motivações sociais e políticas, numa era em que à luta de Martin Luther King se sucedera o activismo dos Black Panthers, a Blaxploitation mostrava o universo real em que se movia a comunidade negra (os seus bairros, as suas casas, as suas lojas, os seus clubes), e criava os seus heróis, ou melhor e na maior parte das vezes, os seus anti-heróis: gangsters, dealers, detectives privados, homens e mulheres obrigados a agir à margem da lei, empurrados por uma sociedade determinada a não lhes dar voz ou futuro – “É um jogo podre, mas é o único que nos deixaram para jogar”, dizia Priest, interpretado por Ron O’Neal, em Superfly. No cartaz promocional de Sweetback’s Baadasssss Song, a história de um homem em fuga depois de atacar dois polícias que espancavam um jovem membro dos Black Panthers, lia-se “rated-X by an all-white jury” e “Starring: The Black Community”.

O mundo violento e luxuriante da blaxploitation, onde “the Man” (expressão que designava, genericamente, os poderosos) era vencido e Priest escapava incólume (mas não o pequeno dealer Freddie), foi criticado por instituições afro-americanas que acusavam os filmes de propagar maus exemplos e criarem uma imagem estereotipada da comunidade, mas atravessou os tempos como marca de emancipação e como referência aproveitada nos mais diversos quadrantes, do hip hop que a samplou abundamente ao Quentin Tarantino que nunca escondeu tê-la como uma das suas maiores referências. Nesse processo, a música foi determinante. Superfly é hoje considerado um dos melhores álbuns de Curtis Mayfield, a banda-sonora de Shaft transformou Isaac Hayes numa estrela e ainda ouvimos Trouble Man, o disco que Marvin Gaye criou para o filme do mesmo título (1972) – “I come up hard, baby, but now I’m cool / I didn’t make it, sugar, playin’ by the rules”, cantava Gaye.

Quatro décadas depois, com Black Panther, há diferenças substanciais: a Blaxploitation de parcos orçamentos usava a amarga e violenta realidade das ruas como espaço de afirmação, de superação, de denúncia, enquanto que Black Panther, milionário filme de super-heróis, inventa uma realidade alternativa, um país fictício, poderoso e pujante, para atingir os mesmos fins. Isso diz-nos algo sobre as diferenças entre o cinema de hoje e de então, e, mais ainda, sobre as diferenças que, entre todas as semelhanças, existem entre a América dos Black Panthers e do Nixon da "lei e ordem” e a América pós-Obama de Trump.

Numa e noutra, porém, assistimos a um momento em que a música surge como  elemento determinante. Muito de acordo com o tempo, Kendrick Lamar agiu como “curador” da música, compondo, interpretando e chamando até si Sounwave para produzir, e convidando a participar Schoolboy Q, Future, Vince Staples, The Weeknd, SZA ou Anderson Paak, figuras nas cenas hip hop e R&B americanas, mas também um músico só possível no século XXI como James Blake, ou os sul-africanos Babes Wodumo, Sjava, Yuegen Blakrok e Saudi.

O resultado, não sendo determinante na acção do filme, em que a banda-sonora tem papel marginal, ganhará vida, ainda assim, como manifestação artística dele inseparável: tal como a música da Blaxploitation conseguiu, à uma, espelhar o seu tempo e ser a banda-sonora daqueles anos, também a música que Kendrick Lamar criou ou ajudou a gerar para Black Panther se ouve como representação inspirada desta segunda década do século XXI. Em som e, pela forma como, nas letras, a acção do filme é usada para comentar o mundo real, também em palavra: “I fight the world, I fight you, I fight myself, I fight God, just tell me how many burdens left?”, despede-se Lamar em Pray for me, a última das catorze canções que compõem a banda-sonora.

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