Willem Dafoe zela por nós

É uma das presenças mais fascinantes do cinema americano das últimas quatro décadas. Interpreta, em The Florida Project, um gerente que corre entre apartamentos, acode a emergências, ameaça inquilinos de expulsão mas também estende-lhes a mão. É uma interpretação, nomeada para o Óscar, despida de marcas de "trabalho de actor", feita de energia, a energia da fusão com a personagem e da fusão da personagem no décor. Willem Dafoe zela por nós.

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Willem Dafoe, 62 anos: vê-lo no ecrã é sentir uma espécie de segurança, é ter a certeza de encontrar alguém que vai “zelar”. Também por nós, espectadores

The Florida Project vale a Willem Dafoe a terceira nomeação para um Óscar de melhor actor secundário. A "estreia" do actor nestas andanças foi há cerca de trinta anos, pela sua interpretação do Sargento Elias no Platoon de Oliver Stone, o papel que, pela primeira vez, terá obrigado "toda a gente" a reparar nele. A segunda vez foi no princípio dos anos 2000, quando deu corpo ao lendário Max Schreck num filme - aliás, bastante mauzinho - de Elias Merhige sobre a rodagem do Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau. Dessas duas vezes Dafoe perdeu, a primeira para Michael Caine (em Hannah e as suas Irmãs de Woody Allen), a segunda para Benicio del Toro (no Traffic de Steven Soderbergh). Se à terceira é de vez, veremos no próximo dia 4 de Março.

Claro que não vale a pena, nem é muito produtivo, enveredar, a propósito de Dafoe ou de qualquer outro, por um discurso sobre a lógica e a moralidade dos prémios atribuídos pela Academia. Até porque podemos passar directamente à conclusão de que as listas de nomeados e premiados, tomadas retrospectivamente e em conjunto, não só não oferecem um retrato fiel da entidade é que suposto homenagearem (o cinema americano) como dão dela um imagem bastante distorcida. Willem Dafoe é um óptimo exemplo disso, ou não nos tivéssemos habituados a ver nele, de maneira consistente e sustentada no tempo, uma das presenças mais sólidas e mais fascinantes do cinema americano das últimas quatro décadas, entre os anos 1980 e os anos 2010 - não é por acaso que o Festival de Berlim lhe vai atribuir por estes dias um Urso de Ouro honorário. Três nomeações para actor secundário não traduzem isso. Aliás, uma nomeação para actor secundário nem sequer traduz a sua importância em The Florida Project, filme em que ele é central e uma figura pivot, em todos os sentidos do termo.

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É uma personagem que o obriga a estar despido de marcas de “trabalho de actor” — nem caracterização física nem contornos psicológicos fora do comum, mas uma interpretação feita de energia Harryson Thevenin
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Harryson Thevenin

É também um papel que não lhe oferece muitos truques a que se agarrar. É uma personagem que o obriga a estar quase despido de marcas exteriores de "trabalho de actor" - nem caracterização física nem contornos psicológicos fora do comum, a sua interpretação é feita de energia, a energia invisível da fusão com a personagem e da fusão da personagem no décor (um motel nas imediações do Disney World, na Florida, ocupado por gente que não tem outro sítio onde cair morta), e de uma abnegação cheia de cambiantes discretas inerentes ao estatuto da personagem.

Ao natural

Dafoe é Bobby, o gerente e zelador do motel, que passa o filme a correr entre apartamentos, a acudir a emergências, a ameaçar inquilinos de expulsão por mau comportamento (fumar dentro de casa, por exemplo) ou por atraso no pagamento da renda, mas também a protegê-los e a estender-lhes a mão, poço inesgotável de solidariedade e compreensão. Como um good cop e um bad cop mesclados na mesma pessoa. "Sim", concorda Willem em conversa telefónica. "De certa forma Bobby também é um actor, também está investido de um papel, representa a autoridade naquele lugar, e por muitos laços emocionais que crie com as outras personagens nunca se esquece da sua função". O que é notável é a maneira como sobrepõe essas duas facetas sem as fazer funcionar a partir de um interruptor tipo Dr Jekyll e Mr Hyde - questão de tonalidade e subtileza psicológica, o bom coração e a severidade de Bobby são imediatamente reconhecíveis e, por exemplo, quando no princípio ameaça a protagonista feminina (Bria Vinaite) de despejo percebemos instintivamente que está a falar a sério mas também que fará tudo o que for possível, da sua parte, para evitar um tal desfecho. É uma personagem construída entre uma compaixão infinita e uma aparência, quase "teatral" de irascibilidade.

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O Bobby interpretado por Dafoe é ao mesmo tempo o senhorio, o cão de guarda e o pai protector daquela gente toda Harryson Thevenin

Se Florida Project nos dá um Dafoe a trabalhar "ao natural", com muito poucas bengalas, é preciso dizer que não se trata de um actor "à antiga", a trabalhar, de filme para filme, variações sobre uma "persona" e sobre um tipo de presença. Pelo contrário, é um actor versátil e elástico, nesse sentido inequivocamente "moderno", que procura o risco, a variedade, e que parece tão à vontade em papéis de composição extremamente codificada como neste registo muito mais solto e próximo do naturalismo. Ele diz que não é do género de gostar muito "de fazer duas vezes a mesma coisa", mas que também nunca tem "ideias definidas sobre o que vai fazer a seguir", escolhendo os projectos em que se envolve "pela sua natureza específca", caso a caso, sem nenhum grande desígnio no longo prazo. Gosta do "terreno", do tipo de trabalho on location, longe dos estúdios, a que um filme como The Florida Project o obrigou, mas também gosta do seu oposto. Gosta de papéis que lhe permitam uma "expressão individual" mas nunca se esquece de que, a partir do momento em que aceita entrar num filme passa a ser uma ferramenta do realizador, uma figura a ser modelada por ele. Gosta de pequenas produções independentes, como Florida Project, mas também gosta de trabalhar em grandes filmes de estúdio com grandes orçamentos e regime de produção industrial - em breve "vai ver-me em Aquaman", o novo filme de super-heróis da DC Comics, a estrear durante 2018. A diferença entre as produções independentes e as grandes máquinas industriais, diz, "não tem nada a ver com liberdade": "já me senti completamente 'preso' em pequenos filmes indie e completamente livre em blockbusters".

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“Aadoraria ter podido filmar as crianças a serem crianças, e trazer isso para o filme, mas teria precisado do dobro do tempo de rodagem — inicialmente pedi 60 dias, a produção concedeu-me metade disso”, diz Sean Baker

De algum modo, Florida Project até joga com uma das características típicas de Dafoe, uma impressão de dureza que vem em parte, mas não exclusivamente, da peculiaridade da sua fisionomia. Não tem "cara de galã", e no princípio da carreira no cinema, depois dos inícios no teatro novaiorquino de avant garde e "experimental" (nomeadamente o Wooster Group, de que foi membro fundador), chegou a temer "estar condenado a papéis de vilão". Por acaso ou não, a entrada no cinema deu-se pela mão de alguns dos realizadores mais "convulsivos", mais violentos, daqueles princípios dos anos 80. Dafoe esteve, numa secundaríssima personagem que acabou praticamente cortada do filme (e sem crédito no genérico), entre os actores do gigantesco As Portas do Paraíso de Michael Cimino. Entrada "em grande", no mais maldito filme americano dos últimos 40 anos, e a seguir quem pegou nele foi a jovem Kathryn Bigelow dos seus tempos mais vanguardistas (e mais "marginais"), que o escolheu para protagonista de The Loveless, revisão "pós-punk" da muito arquetípica mitologia da rebeldia juvenil. Foi possivelmente por isso que Walter Hill o escolheu para uma personagem de Estrada de Fogo, outra variação, mais espectacular e "rock and roll", dessa mesma mitologia. Depois veio Friedkin e a personagem "em chamas" (não é força de expressão) de Viver e Morrer em Los Angeles. E então, Platoon, que na pose sacrificial com que o Sargento Elias se oferecia à morte (imagem do cartaz, quase um ex-libris do filme de Stone) o fez entrar de pleno direito para uma "iconografia" do cinema americano dos anos 80.

O filme de Stone fez dele uma estrela, pelo menos por algum tempo. O gosto pelo risco e pela variedade, Dafoe aproveitou-o logo de seguida. Primeiro, ao aceitar ser o protagonista de um dos mais polémicos filmes da década de 80, A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese. Um verdadeiro "tour de force", em grande parte alimentado pela rudeza da presença de Dafoe, a exprimir na perfeição o conflito interior do tão pouco canónico Cristo que Scorsese foi buscar ao romance de Nikos Kazantzakis. E depois, num filme em que a "persona" de "vilão" de Dafoe seria levada ao extremo mais "gore" e mais desenfreado, o Wild at Heart de David Lynch, onde ela era o terrível Bobby Peru.

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Go Go Tales , como um duplo de Abel Ferrara
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Platoon, de Oliver Stone, primeira nomeação ao Óscar
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A Última Tentação de Cristo: a rudeza de Dafoe a exprimir o conflito interior do tão pouco canónico Cristo de Scorsese

Dafoe não voltaria ao cinema de Lynch e só pontualmente ao de Scorsese (no Aviador), mas ao longo das décadas subsequentes a constante da sua carreira, a par do vai e vem entre o centro da indústria e os projectos de autor cavados na sua fronteira (designação que tanto serve para os filmes de Paul Schrader como para os de Paul Auster), por vezes repletos de polémica espectacularidade (o Anti-Cristo de Lars Von Trier), foi o estabelecimento de "parcerias" priviligiadas com certos cineastas, a cujos filmes voltou repetidamente. Tornou-se membro da "stock company" de Wes Anderson a partir de The Life Aquatic with Steve Zissou, um filme que também provou que Dafoe pode funcionar muito bem num registo de comédia (ou pelo menos naquele tipo de comédia ferida, "abananada", que Anderson pratica). E, sobretudo, tornou-se o principal cúmplice de alguém cujo cinema parece estar nos antípodas do de Wes Anderson: Abel Ferrara. Começou em New Rose Hotel, faz agora vinte anos, e intensificou-se ao longo da última década: Go Go Tales, 4.44 - Último Dia na Terra, Pasolini. A sua transformação em Pier Paolo Pasolini (e mesmo que consideremos que se trata do menos conseguido filme de Ferrara em muitos anos) era uma coisa da ordem do prodigioso, talvez o pináculo da faceta de actor de composição metamorfoseada que existe em Dafoe (para além da ironia de um actor ser, na mesma vida, "Pier Paolo Pasolini" e "Jesus Cristo", algo que obviamente não é para todos). A parceria com Ferrara é "especial", quase "familiar", e nela Dafoe tem por vezes a sensação de funcionar como um duplo do realizador - o caso mais evidente é 4.44, mas em Go Go Tales, na pele de um dono de nightclub a amansar credores e "performers" que não tem dinheiro para pagar, como um cineasta (ou outro artista) a tentar preservar a sua independência, isso também passa. Comentamos com Dafoe que o seu papel em Florida Project lembra muito o de Go Go Tales - a mesma figura paternal, o mesmo corrupio, o mesmo zelo por uma multidão de outcasts e desvalidos. Ele acha a comparação justa: "não tinha pensado nisso, mas é mesmo boa ideia, vou adoptá-la". De certa forma, é isso que Dafoe, aos 62 anos, representa: vê-lo no ecran é sentir uma espécie de segurança, é ter a certeza de encontrar alguém que vai "zelar". Também por nós, espectadores.

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