Trump trava memorando do Partido Democrata e volta a ser acusado de obstrução

Documento contém informação que pode contrariar a tese da Casa Branca de que a investigação sobre a Rússia é uma "caça às bruxas".

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O Presidente norte-americano cita receios sobre a segurança nacional LUSA/MIKE THEILER / POOL

Por baixo das notícias sobre mais um momento de grande convulsão na Casa Branca, com as demissões de dois altos funcionários acusados de violência doméstica, há uma importante batalha política em curso em Washington, que está a desenrolar-se em câmara lenta mas que tem afectado o FBI como já não acontecia desde o escândalo Watergate, há mais de 40 anos.

Em causa estão dois memorandos secretos: um do Partido Republicano, com informações favoráveis ao Presidente Trump e que foi divulgado com o aval da Casa Branca, e outro, do Partido Democrata, que põe em causa essas informações e cuja divulgação foi travada na sexta-feira.

Esta história começou no dia 2 de Fevereiro, quando o Presidente autorizou a divulgação de um memorando secreto elaborado pelos membros do Partido Republicano na Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes – uma comissão liderada pelo congressista luso-descendente Devin Nunes, que fez parte da equipa de transição de Trump entre a vitória nas eleições presidenciais e a entrada na Casa Branca.

Nesse memorando, Nunes e os seus colegas da maioria argumentam que o FBI e o Departamento de Justiça abusaram da sua autoridade quando pediram a um tribunal especial um mandado para vigiarem um conselheiro da campanha eleitoral de Trump – e fizeram-no, segundo sugere o tal memorando, porque não queriam que Trump ganhasse as eleições.

Por essa altura, em Outubro de 2016, a investigação às suspeitas de conluio entre elementos da campanha de Trump e o Governo russo já tinha começado, e o FBI estava interessado nas actividades de Carter Page, uma figura com conhecidas ligações profissionais à Rússia e que, segundo uma investigação independente de um antigo espião britânico, se tinha reunido em Moscovo com pessoas próximas do Presidente Vladimir Putin quando fazia parte da equipa da campanha de Trump.

Só que essa investigação, do antigo espião britânico Christopher Steele, tinha sido financiada em parte pelo Partido Democrata e pela campanha eleitoral de Hillary Clinton, numa daquelas habituais tentativas dos partidos políticos para encontrarem informações sujas sobre os seus adversários.

O problema, segundo o Partido Republicano, é que o FBI não disse ao juiz do tribunal especial que tinha usado uma investigação com objectivos políticos para justificar uma vigilância apertada ao cidadão norte-americano Carter Page – com a agravante de que nenhuma informação contida na investigação do antigo espião britânico tinha sido previamente corroborada pelos serviços secretos norte-americanos.

Se toda esta narrativa do Partido Republicano fosse uma verdade inquestionável, o Presidente Trump teria a oportunidade de reafirmar, com fortes indícios, que a investigação sobre a Rússia assenta numa campanha política em que o FBI desempenhou um papel essencial ao abusar do seu poder com base em informações não comprovadas e financiadas pela campanha de Hillary Clinton.

E foi isso mesmo que o Presidente Trump fez. Assim que autorizou a divulgação do memorando do Partido Republicano, no dia 2 de Fevereiro, Trump escreveu no Twitter que esse memorando veio dar-lhe razão quando diz que a investigação sobre a Rússia é uma caça às bruxas: "Não houve conluio e não houve obstrução. Isto é uma vergonha americana!"

Ainda que vários congressistas do Partido Republicano tenham vindo dizer que uma coisa é acusar o FBI de que abusou do seu poder, e outra é a legitimidade do procurador Robert Mueller para investigar as suspeitas sobre a campanha de Trump e a Rússia, Trump fez questão de colar uma à outra. E de trazer para a discussão pública a ideia de que o FBI participou numa teoria da conspiração contra ele, em conluio com o Partido Democrata e a campanha de Clinton – um ataque ao FBI por parte de um Presidente que já não se via desde os tempos de Richard Nixon, e que derruba a tradição norte-americana de se deixar a política fora das discussões sobre investigações criminais.

O outro memorando

Do outro lado, os membros do Partido Democrata na mesma Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes têm acusado o Partido Republicano de elaborar um memorando com informações escolhidas a dedo, deixando de fora outras informações que podem ajudar a perceber, por exemplo, que o FBI se apoiou em mais indícios do que a investigação do antigo espião britânico para pedir um mandado de vigilância sobre Carter Page.

Para apresentarem esta versão, os membros do Partido Democrata elaboraram o seu próprio memorando, mas o grande público só poderia conhecê-lo se o Presidente Trump autorizasse a sua divulgação – tal como fez com o memorando do Partido Republicano.

A primeira resposta a esse pedido chegou sexta-feira à noite, quatro dias depois de ter chegado à secretária do Presidente e sete dias depois de o memorando do Partido Republicano ter sido divulgado: citando preocupações com a divulgação de informações sensíveis para a segurança nacional, o Presidente não autorizou a publicação do documento do Partido Democrata.

Em comunicado, o conselheiro da Casa Branca para os assuntos jurídicos, Don McGahn, fez saber que o Presidente Trump "está inclinado" a autorizar a divulgação deste segundo memorando, mas primeiro quer que a Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes (onde o Partido Republicano está em maioria) volte a estudar o documento – e a censurar toda a informação que "poderá criar preocupações significativas aos interesses da segurança nacional e das instituições de autoridade policial".

Em reacção a esta decisão da Casa Branca, o Partido Democrata acusou o Trump de estar mais uma vez a obstruir a justiça e de ter algo a esconder.

"Esta decisão confirma o que já sabemos há semanas – que a decisão dele de divulgar o memorando de Nunes foi uma jogada política descarada sem preocupações com a segurança nacional. A hipocrisia é evidente. O que tem o Presidente a esconder?", questionou, no Twitter, a líder da minoria do Partido Democrata na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi.

Em sua defesa, o Presidente Trump acusa o Partido Democrata de lhe ter feito chegar um memorando "muito político e longo", com informações que os congressistas já sabiam ser prejudiciais para a segurança nacional, "e a partir do qual culpariam a Casa Branca de falta de transparência" por não autorizar a sua divulgação.

Mas também surgiram críticas no seio do Partido Republicano – o congressista Justin Amash, por exemplo, disse este sábado que o memorando do Partido Democrata deve ser divulgado. "Eu li os dois memorandos. Nenhum deles põe em perigo a segurança nacional. Os cidadãos americanos merecem ter a oportunidade de ler ambos."

FBI critica os dois memorandos

Na justificação para não divulgar o memorando do Partido Democrata tal como está, Trump cita o receio de que alguma da informação pode pôr em causa a segurança nacional, uma preocupação partilhada pelo FBI e pelo Departamento de Justiça numa avaliação prévia pedida pela Casa Branca.

Na semana passada, quando autorizou a divulgação do memorando do Partido Republicano, o Presidente Trump também contou com a oposição do FBI e do Departamento de Justiça – nessa altura, o FBI alertou que a divulgação do memorando do Partido Republicano seria "extremamente prejudicial" e tomou a decisão, rara, de publicar um comunicado em que refere "omissões materiais de facto com um impacto fundamental no rigor do memorando".

Ainda assim, o Presidente Trump autorizou a sua divulgação e apresentou-o ao país como a prova de que a investigação sobre a Rússia é uma "caça às bruxas".

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