Nada será como dantes

A negociação do orçamento da União Europeia costuma ser um dos momentos mais “inestéticos” da família europeia. Desta vez, há que ter presente que a UE é uma realidade completamente diferente do que era em 2005.

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1. Em Dezembro de 2005, na última cimeira da presidência britânica da União Europeia, Tony Blair estava confrontado com o falhanço das negociações do orçamento comunitário plurianual. Como de costume, no menu estava o rebate dos britânicos, que queriam pagar menos, mas estava também a Polónia, acabada de entrar (com mais nove países do Leste e do Sul) na União Europeia, que queria mais dinheiro para a coesão e que já apresentava uma atitude típica da forma como tencionava comportar-se na qualidade de novo membro. Mas a grande expectativa que dominava a cimeira era a entrada em cena da nova chanceler alemã, de nome Angela Merkel, que acabava de derrotar (por muito pouco) o líder social-democrata Gerhard Schröder, à frente de um governo de “grande coligação”. A primeira impressão não podia ter sido melhor. Ela entrou, com o blazer que se transformaria na sua imagem de marca, naquele dia sobriamente preto, um sorriso acolhedor no rosto, a própria imagem da “salvação” da Europa. Chegou, viu e venceu. Puxou do livro de cheques, embora com muito menos generosidade do que no tempo de Kohl. Deu mais algum dinheiro aos polacos, ajustou o rebate britânico o necessário, fechou rapidamente um acordo com o qual toda a gente se mostrava satisfeita: quem pagava e quem recebia dos cofres de Bruxelas. A nova chanceler vinha do Leste, uma total novidade, e envergava facilmente as vestes da Alemanha como o baluarte do europeísmo. Doze anos depois, por boas e por más razões, Merkel passou a ser visita habitual nas nossas casas.

2. Vem esta história a propósito do início das negociações do próximo orçamento para 2021-2027, que costuma ser um dos momentos mais “inestéticos” da família europeia. A União Europeia é hoje uma realidade completamente diferente do que era em 2005. O seu futuro ainda está a ser reconstruído, sem rumo definido. A crise “existencial” que atravessou desde 2010 alterou profundamente os seus equilíbrios políticos internos. A agenda europeia é outra, com novas prioridades, por exemplo, a segurança e defesa ou uma reforma da zona euro ainda por acabar. A crise do euro cavou profundas divisões entre os países mais ricos e os mais pobres, ao mesmo tempo que o sistema internacional iniciou uma mudança vertiginosa, que exige muito mais à Europa do que nos anos mais calmos de 2005. O maior erro dos contribuintes líquidos, entre os quais a Alemanha, ou dos recebedores líquidos (entre os quais Portugal) seria olhar para esta negociação como se nada tivesse mudado. É verdade que apenas a convergência real das economias do euro pode garantir a sustentabilidade da União Económica e Monetária no longo prazo. E isso implica, naturalmente, regras diferentes para a governação económica, mas também o financiamento das reformas mais difíceis que esses países ainda têm de levar a cabo. Mas também é preciso algum dinheiro para a defesa, para a segurança interna, ou ainda para financiar a integração dos imigrantes e reforçar a fronteira externa da União. Para complicar a tarefa, se algumas das ideias de Macron forem para a frente, a reforma da zona euro vai também implicar mais dinheiro (por exemplo, para um orçamento próprio, distinto do orçamento dos futuros 27). A saída britânica abre um buraco de 12 mil milhões por ano (em termos absolutos, era o segundo maior contribuinte, depois da Alemanha) que deverá ser colmatado. As primeiras salvas já foram disparadas e contêm algumas surpresas, a primeira das quais nos remete de novo à chanceler. No acordo de princípio negociado entre a CDU/CSU e o SPD, uma das principais novidades foi o reconhecimento de que Berlim vai ter de pagar mais para o orçamento comunitário. Mas também não foi uma total surpresa. O comissário alemão, Günther Oettinger, um homem bastante controverso mas apesar de tudo membro da CDU da chanceler, já tinha dito alguma coisa no mesmo sentido, indo aliás um pouco mais longe, ao referir que não se podia financiar a defesa apenas à custa dos fundos de coesão. Por enquanto, os países do Norte, igualmente contribuintes líquidos, já começaram a dizer que não tencionam pagar nem mais um tostão para Bruxelas. É o caso da Holanda e da Finlândia. Coincidência ou não, os respectivos governos têm o apoio de dois partidos populistas. A outra boa surpresa, ainda não totalmente clarificada, vem de Paris. O Presidente terá deixado entender que a PAC (os fundos de apoio à agricultura) tinha de deixar de ser matéria tabu, como foi até hoje. A França recebe uma enorme fatia da PAC, enquanto maior potência agrícola europeia. Macron lembrou que esta PAC está desactualizada, tal como estão outras políticas de coesão, e que é preciso levar em conta as novas prioridades da agenda europeia. Estreia absoluta para um locatário do Eliseu. Vamos ver. As políticas de coesão continuam a ser necessárias para colmatar o gap entre Norte e Sul, mas também entre Leste e Oeste. As novas prioridades foram também subscritas por países como Portugal, Espanha ou Itália.

3. Por cá, com o PCP e o Bloco fora do debate (porque fora do consenso europeu), os dois protagonistas vão ser, necessariamente, o PS e o PSD, que sempre se entenderam sobre a política europeia, incluindo as negociações dos orçamentos europeus, desde a adesão e do primeiro Pacote Delors. Será também um teste à respectiva visão sobre a Europa que queremos ajudar a reconstruir e o nosso lugar nela. Seria péssimo que o PSD continuasse a comportar-se como até agora: ser do contra, contra tudo. Rui Rio não comunga desta lógica. Mas a tentação é grande e o que pensa o PSD da Europa, neste momento pós-Passos, ainda não é claro. O Presidente já veio colocar a questão publicamente, recordando que um programa de grandes reformas de médio prazo para estimular a economia tem de resultar de um vasto entendimento ao centro. A vida europeia do Governo de António Costa correu bem, voltando a dar ao país um lugar decente à mesa das negociações. O PSD precisa de fazer também o seu percurso. Para ambos, já não se trata apenas de corrigir os tremendos efeitos sociais do ajustamento, trata-se de ter uma ideia sobre a transformação da economia, do Estado e do modelo social que deixe para trás um país dual: avançado e europeu nalgumas coisas, pobre e retrógrado noutras.

4. Tudo o que foi dito acima não terá grande importância, caso a convenção extraordinária do SPD (600 militantes) rejeite mais logo à noite o acordo de coligação que Merkel negociou com Martin Schulz. A Europa já passou por tudo, é verdade. Mas as circunstâncias da crise existencial que viveu fazem com que a ausência de governo em Berlim possa ter o efeito de uma “bomba atómica” no centro da integração europeia. Tudo ficará em suspenso. A saída política do impasse não é óbvia nem será sem custos. A ofensiva europeia de Macron perderá um dos dois motores principais. O melhor é não dizer mais nada e fazer figas. 

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