Vontade de filmar, isso acima de tudo

Em 2018, o cinema feito em Portugal vai continuar a viajar — e não só pelos festivais que parecem ser o seu habitat natural. Há vontade de filmar, e isso está acima de tudo, confirma Susana Nobre, que dentro de dias compete em Roterdão.

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O novo filme da realizadora, Tempo Comum, polaroid do período logo ao seguir ao nascimento de um bebé, está seleccionado para a competição Bright Future no festival de Roterdão Miguel Manso

“Temos todos um pouco essa… ‘ingenuidade’. De cada filme não ter outra ordem de constrangimentos senão juntar os materiais que fazem parte de um filme e ser simplesmente fiel a essa construção. Manter uma abertura que é uma seriedade, um respeito, uma procura da verdade com aquilo que se está a fazer.” Susana Nobre está a falar do seu filme Tempo Comum, seleccionado para a competição Bright Future no festival de Roterdão (arranca quarta-feira, 24), e do modo como ela e os seus colegas da Terratreme, a produtora da qual é uma das fundadoras, entendem o cinema. Mas a ideia que expressa — de fidelidade a um propósito, de convite ao espectador para entrar no espaço fora do tempo criado por um filme — é comum a uma produção cinematográfica portuguesa reconhecida mundialmente pelo eclectismo, pela diversidade, pelo “artesanato” de fazer com pouco dinheiro filmes que respiram uma absoluta liberdade de criação e produção.

É irresistível extrapolar aquilo que Susana diz para as “marcas registadas” que colocaram o cinema que se faz em Portugal na primeira linha do circuito internacional. Cá dentro, há fatalmente polémicas com os júris, com a SECA, com o ministro, com o secretário de estado, com os concursos, com o financiamento, etc. Mas, lá fora, basta pensar no ano de 2017, com a terceira curta portuguesa (Cidade Pequena de Diogo Costa Amarante) a vencer o concurso de Berlim num curto espaço de tempo; com uma outra vitória nas curtas de Locarno (António e Catarina, de Cristina Hanes); com uma série de filmes a chamar a atenção nos festivais internacionais ou a chegarem a sala um pouco por todo o mundo, do Ornitólogo de João Pedro Rodrigues à Fábrica de Nada de Pedro Pinho passando por Colo de Teresa Villaverde.

Lá fora e cá dentro

É verdade que tudo isto se passa dentro de um circuito de festivais, de “cinema de autor” se quisermos, que pode não significar muito perante a grande indústria de consumo rápido dominada pelas mega-produções americanas. Sim, estes filmes que viajam por todo o mundo continuam sem ser reconhecidos no seu próprio país. Colo (competição oficial em Berlim 2017) continua a aguardar estreia. O Ornitólogo (melhor realização em Locarno 2016) ainda nem em DVD está disponível. A Fábrica de Nada (Quinzena dos Realizadores em Cannes 2017), que foi internacionalmente “o filme português” do ano, apenas atraiu 7500 espectadores entre nós. Mesmo São Jorge de Marco Martins, que deu a Nuno Lopes prémio de interpretação em Veneza em 2016, se ficou pelos 42 mil espectadores. E o filme português mais visto em 2017, O Fim da Inocência de Joaquim Leitão, adaptando o best-seller de Francisco Salgueiro, teve uma performance honrosa para a produção local mas medíocre pelos padrões de mercado: 76 mil espectadores (números do ICA a 31 de Dezembro). Para comparar: o 40º filme mais visto em 2017, um Kong: Ilha da Caveira de que já não nos lembremos, fez 136 mil espectadores. O mais visto do ano, Velocidade Furiosa 8, somou 787 mil. E todos os 40 mais vistos são produções ou co-produções americanas.

Perante este desequilíbrio de mercado, os festivais parecem ser o “habitat natural” do cinema português; 2018 ainda mal começou e já o confirma. Tempo Comum, modesta polaroid do período logo ao seguir ao nascimento de um bebé, é uma de três longas em estreia mundial em Roterdão. Estava o Ípsilon a entrevistar Susana Nobre e confirmava-se a presença de Djon Africa, primeira longa de ficção da dupla Filipa Reis e João Miller Guerra, na competição principal do certame holandês; pelo fim da semana anunciava-se a estreia mundial, fora de concurso, do documentário de Teresa Villaverde O Termómetro de Galileu, fazendo subir para 11 produções ou co-produções a “embaixada” lusa a Roterdão (comparável talvez apenas à dúzia e meia de títulos em Locarno 2016). O festival de Berlim, que já deu o prémio máximo das curtas-metragens a João Salaviza, Leonor Teles e Diogo Costa Amarante, terá a partir de 15 de Fevereiro (à data do fecho deste texto) três curtas nacionais em competição, assinadas por Salaviza e Ricardo Alves Jr., David Pinheiro Vicente e João Viana.

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Miguel Manso

Mas, por isso mesmo, Susana Nobre é peremptória quanto ao peso dos certames: “Os festivais não podem determinar aquilo que é a crença ou a motivação de um realizador em continuar a filmar. Tenho para mim que Tempo Comum poderia não estar em Roterdão, e também sei que, se não estivesse, eu não iria ter menos vontade de fazer o próximo filme. Isso é muito importante.”

O importante é que os filmes estejam aí, para serem vistos, para quem os quiser ver — e 2018 arranca com dois bons exemplos disso. Lá fora, a retrospectiva integral que a Cinemateca Francesa dedica a Paulo Rocha desde dia 10, e que corre até Fevereiro; cá dentro, a estreia esta semana nas salas de Bad Investigate, a mais recente realização de Luís Ismael, que criou um fenómeno chamado Balas & Bolinhos em regime de auto-produção fora do sistema tradicional.

É o primeiro de um assinalável número de filmes portugueses já escalados para chegar as salas, entre nomes novos, realizadores consagrados ou cineastas dos quais já há muito não havia notícias. António Ferreira (Esquece Tudo o que te Disse, Embargo), estreará a terceira ficção longa, Pedro e Inês, com Joana de Verona e Diogo Amaral numa adaptação do romance de Rosa Lobato Faria A Trança de Inês (Outubro). Outras transposições para cinema são as da Aparição de Vergílio Ferreira por Fernando Vendrell (Fintar o Destino, Pele), com Jaime Freitas e Victoria Guerra (Março), ou Seara de Vento de Manuel da Fonseca por Sérgio Tréfaut na sua segunda abordagem à ficção longa após Viagem a Lisboa com um elenco que inclui Isabel Ruth, Leonor Silveira e Luís Miguel Cintra (Setembro). António Pinhão Botelho trará Ruth, um argumento original de Leonor Pinhão à volta da figura de Eusébio (estreia agendada para Maio). Haverá a história verídica do Soldado Milhões, herói português da Primeira Guerra Mundial interpretado por João Arrais (em jovem) e Miguel Borges (em adulto), filmada por Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa em duplo modo mini-série e filme, e Leonel Vieira produzirá Herdaste o Variedades, comédia à medida de Bruno Nogueira dirigida por Sérgio Graciano.

Alguns dos filmes de 2018 passaram por festivais durante 2017. É o caso do regresso de Jorge Cramez às longas dez anos depois de O Capacete Dourado com Amor, Amor, uma comédia romântica inspirada em Corneille (mostrado no IndieLisboa 2017, estreia a 8 de Fevereiro); do divertido retrato lisboeta de Ramiro, de Manuel Mozos (que abriu o Doclisboa e deverá chegar às salas em Março); ou de Encontro Silencioso, o elíptico olhar de Miguel Clara Vasconcelos sobre a praxe (vencedor nacional do IndieLisboa 2017, previsto para Abril). Isto enquanto se aguardam confirmações de data para Colo de Villaverde, O Sentido da Vida de Miguel Gonçalves Mendes, Correspondências de Rita Azevedo Gomes ou Mariphasa de Sandro Aguilar; e para co-produções como Milla de Valérie Massadian (vencedora do Doclisboa 2017), 9 Doigts de F. J. Ossang (melhor realização em Locarno 2017), O Capitão de Robert Schwentke (melhor fotografia em San Sebastian, previsto para Março) ou o aguardado e não menos controverso Homem que Matou Dom Quixote de Terry Gilliam.

E a produção, essa, também está longe de estar parada. Pedro Costa estará já a trabalhar num novo projecto (do pouco que se sabe, intitulado Filhas do Fogo), e Miguel Gomes, depois das Mil e Uma Noites, continua em pré-produção da sua adaptação de Os Sertões, do brasileiro Euclides da Cunha, a rodar em 2019; Gonçalo Waddington, João Nicolau, João Nuno Pinto e Vicente Alves do Ó filmarão em 2018, enquanto Ivo Ferreira já concluíu as rodagens do sucessor de Cartas da Guerra, Hotel Império.

Por onde se quiser ver, então, o cinema português continua a resistir ainda e sempre ao invasor, não vai baixar os braços, vai continuar a existir em 2018. E a convidar-nos a entrar no seu espaço fora do tempo.

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