Abel Ferrara: "Já não sou escravo dos traficantes"

Alive in France acompanha uma digressão musical dedicada às canções e às músicas dos filmes do cineasta norte-americano. Que agora vive na Europa. Liberto do seu triunvirato: cocaína, heroína e álcool.

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Uma parte da carreira de Abel Ferrara é feita com gangsters e com Nova Iorque (Polícia Sem Lei, O Rei de Nova Iorque... ]. Ele próprio parece um gangster, com o seu sotaque do Bronx. Mas à medida que os anos passaram, e especialmente após se ter mudado para Roma depois dos ataques terroristas em Nova Iorque, o provocador amoleceu. O documentário Alive in France (secção Heart Beat do Doclisboa, sábado, 24h, Cinema Ideal) é essencialmente uma reflexão sobre a liberdade de que goza por viver na Europa – o mesmo sentimento de Piazza Vittorio, também já deste ano, em que filma uma praça de Roma e os seus habitantes, alguns "notáveis", como Willem Dafoe que agora ali vive, outros gente "normal" que introduz mundanças na configuração de uma cidade europeia: os imigrantes.

Alive in France acompanha uma digressão musical dedicada às canções e às músicas dos filmes do cineasta, mostra-nos Ferrara a tocar guitarra e a cantar blues-rock com voz rouca, acompanhado pelos seus colaboradores/sobreviventes de longa data, o teclista/compositor Joe Delia e o cantor/actor Paul Hipp.
“Com todos os vícios que havia nos anos 70 e 80, cada um de nós esteve para morrer oito ou nove vezes”, dizia Hipp à assistência na estreia do filme em Cannes.

A exuberante segunda mulher de Ferrara, a actriz russa de 29 anos Christina Chiriac, rouba algumas cenas, particularmente quando rodopia em palco e baixa o vestido para mostrar o soutien ao público, enquanto à margem do palco Ferrara mostra o seu carinho pela filha Anna. (Claramente habituada às câmaras, Anna não mostra um pingo de vergonha e puxa os holofotes para si. Talvez seja hereditário.)

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Aos 66 anos Ferrara mantém a sua energia. Tem ainda mais depois de ter deixado as drogas e o álcool e de se ter tornado budista.

Encontrei-me com Ferrara em várias ocasiões. Recordo-me da vez em que, a pedido de Ferrara, apareci para uma entrevista em Nova Iorque à meia-noite – aconteceu durante as filmagens de Os Viciosos, quando, ele hoje admite, estava nas garras dos seus próprios vícios.

Já afirmou que todos os seus filmes são sobre vícios. Nestes também se incluem as mulheres?
Abel Ferrara
– Sim, acho que é a mesma coisa. É algo que tem muito de egoísta. Tal como as drogas e o álcool, falámos disso em Bem-vindo a Nova Iorque, a ideia do abuso de poder [filme inspirado no caso Dominique Strauss-Kahn]. É um assunto vasto mas que se resume sempre ao mesmo: como respeitar e lidar com as mulheres. Estou de momento numa relação feliz, mas continuo a ter esse ego, é algo natural. É a continuação da espécie, está no nosso código genético. Quando em situações normais se tenta controlar isso tentando seduzir toda a gente, estamos perante uma neurose. É preciso controlar esses impulsos e estar sempre vigilante.

O caminho mais rápido para a transcendência espiritual tem a ver com a mulher e com abraçar a nossa sexualidade, mas não da forma de Polícia sem Lei ou de Bem-vindo a Nova Iorque. É preciso encontrar aquela pessoa e levar isso ao limite. A Christina trabalhou comigo em Pasolini, conhecemo-nos na rodagem e foi amor à primeira vista.

Parece ser um bocado rebelde, tal como você.
Paul Hipp – São ambos pessoas enérgicas, artistas enérgicos. Rebelde tem uma conotação pouco séria, mas quando os vemos com Anna percebemos que são uma equipa. Ela dá-lhe cabo da cabeça e ele faz o mesmo, mas amam-se um ao outro.

É interessante vermos essa relação no filme.
Joe Delia – Funciona bem na vida real, por isso limitámo-nos a retratar a vida deles em câmara.

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Costuma tocar música na sua vida quotidiana?
A.F. – Estou sempre a tocar, os meus vizinhos ficam malucos. É como se fosse a minha terapia. Gosto de ouvir música, mas prefiro tocá-la.

Qual é a importância da música na educação da sua filha?
A.F. – Enorme. A mãe dela também adora música, toca música dos Balcãs, aquelas baterias malucas. Ela é nova e está a começar a descobrir a música, como o Jimi Hendrix. Há uma semana que só ouvimos Jimi Hendrix. E depois vai descobrir o Jim Morrison e lá vou eu ter de levar com o raio dos Doors durante uma semana inteira.

Como surgiu o título Alive in France?
A.F. – Estávamos a tocar em França e é o que andamos a fazer neste momento. Não se tratou de simplesmente pegar nas músicas dos filmes e falar da música que tocávamos há 30 anos atrás.

Antes do filme, o Abel e o Joe não se falavam há 20 anos por causa de discussões relacionadas com drogas e outras coisas…
A.F. – Com isto abrimos a “caixa de Pandora”

J.D. – Eu e o Abel temos uma longa história, que começou à volta de 1975.

Como é que fizeram as pazes?
A.F. – Está lá no filme, a primeira vez que nos vimos.

J.D. – Há tantas coisas pelas quais me sinto grato… voltarmos a estar juntos e poder trabalhar com o Abel, porque somos como irmãos e sempre fomos desde que tínhamos 20 anos. Tudo se alinhou.

P.H. – Fui eu o responsável. Liguei-lhes e disse: “Por que é que não voltam um para o outro? Fazem um casal tão querido!” Duas velhas carcaças armadas em drama queens e eu no meio!

Não se sentem como parte dos últimos sobreviventes, numa altura em que tantos músicos e pessoas que levaram uma vida de excessos estão a morrer? Claro que o Keith Richards é o mais famoso sobrevivente e talvez isso tenha a ver com a sua atitude positiva.
P.H. – Não sei se a atitude positiva está ligada à sobrevivência, mas não há dúvida que o Abel tem uma atitude muito positiva. Quer se esteja a deitar ou a levantar, tudo nele é criatividade.

A.F. – E deixei a bebida e as drogas. Não bebo há sete anos e parei com as drogas há cinco.

De que maneira a sua vida mudou?
A.F. – Como do dia para a noite. Já não sou escravo dos traficantes. Para estarmos sóbrios, precisamos de deixar tanto as drogas como o álcool. Libertei-me da ilusão, já não sou prisioneiro daquela ideia que que para fazer isto preciso daquilo. Para mim era cocaína, heroína e álcool, era o meu triunvirato. Demorei 44 anos a perceber que é tudo uma farsa. Estes tipos chegaram a essa conclusão um bocadinho mais depressa do que eu. Mas agora mudei a minha vida a 1000%, para melhor.

Qual seria o seu conselho para as suas filhas? [Tem duas outras filhas adoptadas, mais velhas]
A.F. – Não se iludam a vocês próprias. É preciso ver as coisas como elas são, termos a noção muito exacta da realidade.

Considera-se uma espécie de “cigano”?
A.F. – São os filmes e as mulheres que determinam o nosso caminho. Os filmes levam-nos a um sítio e as mulheres fazem-nos ficar lá. Eu fui a Roma rodar um filme, conheci uma mulher, engravidei-a, e por lá fiquei.

P.H. – Uma conversa tão agradável e é assim que a acabas! Não fosse pensarem que o Abel tinha amolecido de vez…

Tradução de António Domingos

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