Crónica dos anos da crise no Sul da Península

Em Notas de Campo, a concurso no Doclisboa, Catarina Botelho reflecte sobre o período da austeridade com um objecto “entre mundos”.

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Notas de Campo (Cinema São Jorge, sexta-feira, às 18h45; repete no dia 25, às 21h45) é o primeiro grande filme da Competição Portuguesa do Doclisboa 2017. Porque fala de nós, portugueses, e do modo como vivemos os anos da austeridade, mas sobretudo porque o faz em liberdade criativa absoluta: esta média-metragem de 47 minutos é a primeira realização da artista visual Catarina Botelho (n. 1981), e um filme feito, nas suas palavras, “com muito pouco dinheiro e por necessidade pessoal”. Desde Barcelona, onde é bolseira Gulbenkian no Museu de Arte Contemporânea, Catarina explica ao PÚBLICO por Skype que Notas de Campo teve uma gestação prolongada, devido à própria dimensão do tema: como filmar a experiência da austeridade, da dificuldade de sobreviver? “Era preciso perceber o que estávamos a dizer e o que víamos acontecer. Senti que precisava de fazer uma espécie de... fuga, uma viagem, um afastamento, e talvez com essa perspectiva conseguisse começar a olhar para este assunto. E daí veio a ideia de a imagem ser um conjunto de travellings que representariam exactamente esse afastamento.”

Notas de Campo são, então, histórias dos anos da crise sobrepostas a uma sequência de imagens em movimento: duas mulheres (Luísa Gago e Joana Pinho, que nunca são vistas) reflectem sobre a experiência de atravessar a crise sem saber o que o futuro reserva, enquanto a câmara olha pela janela de um veículo que avança em direcção ao Sul. Catarina explica esse “desfasamento” entre a imagem e o som (que recorda, por exemplo, o que Salomé Lamas fez na primeira metade de Eldorado XXI): “Os travellings são uma tentativa de atingir na imagem uma temporalidade que se aproximasse da lógica do pensamento. Interessava-me que a paisagem fosse menos concreta à medida que as pessoas reflectissem mais sobre o assunto e o clarificassem. Interessava-me também procurar uma certa ideia do Sul, para me opor aos centros de direcção da Europa, ao discurso da troika sobre os países do Sul serem preguiçosos, à lógica colectivista de a vida ser feita para trabalhar”.

Curiosamente, Notas de Campo começou, ao invés do que é normal, pela imagem e não pelo som. “Já sabia que ia ter palavras em off mas não sabia exactamente o que elas iam dizer,” diz Catarina. “Senti a necessidade de fazer a viagem primeiro para depois perceber como a articularia com as palavras. Além de que só quando a crise aliviou um bocadinho é que conseguimos falar disso com outro distanciamento, e por isso as entrevistas que aparecem foram realizadas já em 2016.”

O resultado é “um objecto um bocado entre mundos”, nas palavras da realizadora. “Venho das artes visuais e a maneira como eu tinha trabalhado até aqui não conseguiria representar a complexidade do assunto, e precisava de me atirar para outro tipo de medium. Creio que isto não funcionaria como instalação; é um filme que não respeita as regras, e ainda bem.”

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